“Aqui em casa a gente não se isolou quando soube que o Fernando estava com covid. A gente ficou junto, eu comi no prato dele, eu beijei ele, eu sequei lágrimas dele. Não tive sintoma nenhum, não fizemos o teste. Foi muito difícil. Ele ficou 35 dias internado. Desses 35 dias, ele ficou 33 entubado e inconsciente. Cada dia era um dia difícil, os boletins médicos eram doídos, eram sofridos. Estou aqui com os meninos, que ele me deixou para me dar forças para que eu consiga continuar a nossa vida.”

Palavras de Cleni Ferrari Bernardi, a Bombom, parceira de vida e trabalho do treinador Luiz Fernando Bernardi, em homenagem realizada por TUTAMÉIA para celebrar a vida e o legado do criador da Find Yourself, uma das mais longevas assessorias esportivas de São Paulo.

Fernando foi mais uma vítima da pandemia no Brasil. Como falamos no programa, os mais de quatro milhões e setecentos mil casos, as mais de 141 mil mortes não são apenas números. Cada um era um pai, uma mãe, um filho, uma irmã, o amor da vida, a professora, o músico, o cientista, a empresária, o amigo, a companheira.

Foi assim que homenageamos o Fernando, que morreu no dia 21 de setembro de 2020, quando faltava menos de dois meses para completar cinquenta anos –a maior parte deles dedicados à construção de sua assessoria esportiva, que fundou em 1994, então em parceria com outra lenda das corridas em São Paulo, o treinador Marco Antonio Oliveira.

O treinador Nélson Evêncio, conselheiro e um dos fundadores da Associação dos Treinadores de Corridas de São Paulo, que destacou esse aspecto da vida de Bernardi: “Eu uma das gestões da ATC, eu resolvi convidá-lo para ser um dos diretores. Era um cara muito detalhista, muito aplicado, muito disciplinado. Tem uma frase que ele usava muito: o bom é inimigo do ótimo, e a gente falava Pô Fernando, não precisa ser tão exagerado assim. Depois conheci outra face dele, um cara divertido, que contava piadas…”

Sobre isso, o fotógrafo Tião Moreira, um dos maiores conhecedores do mundo da corrida de rua no país, trouxe relato histórico: “A gente estava voltando de uma competição em Floripa, a BR ainda não era duplicada… Lá por Balneário Camboriú, de repente aparecem na estrada, na outra pista dois cavalos. Foi num susto danado. Morremos de medo. O Fernando ficou apavorado, nós também, mas depois foi tanta piada que ele fez daquela história dos cavalos que a gente veio 500 quilômetros até São Paulo dando risada, a viagem toda dando risada”.

Atletas profissionais e amadores treinados por Bernardi também participaram da homenagem realizada por TUTAMÉIA (clique no vídeo acima para ver a sessão completa)

Tetracampeã brasileira de corridas de rua, Conceição Oliveira deu um depoimento várias vezes interrompido pela emoção: “Minha história com o Fernando começou em 2002. Eu estava começando a despontar no cenário nacional de corridas de rua, ainda muito verde nessa realidade da corrida. Aprendi com ele a valorização do tempo. Ele sempre falava: ‘Quer ser um atleta de alto rendimento? Se dedica, foca, não perca tempo. O tempo de corredor de alto rendimento é curto. Então aproveita cada momento’.  Meu primeiro título como maratonista foi incentivado pelo Luiz Fernando. Maratona de Blumenau. Ele começou a acreditar mais em mim do que eu mesmo, organizou a estratégia. Encontrei o Fernando nos últimos 12 quilômetros, foram os momentos cruciais, em que eu estava muito, muito cansada. Ele dizia: ‘Não para, você já está entre as cinco, já está bom, e vamo e vamo e vamo’. Acho que, se ele não estivesse ali, eu teria desistido.”

A jornalista Lena Castellon destacou a dedicação que o treinador oferecia a cada atleta, procurando conhecer os problemas mais íntimos, para ajudar a enfrentar cada situação difícil: “Contei para ele tudo da depressão e dos ataques de pânico sofridos algumas vezes enquanto corria. Do ponto de vista físico, tudo em mim estava em ordem. Mas eu tinha esses problemas que podiam comprometer meus treinos. O Fernando monitorava isso, sempre discretamente. Eu era bem cuidada. E me sentia grata.”

Parceiro de Luiz Fernando em várias atividades profissionais e no treinamento de alguns atletas, o fisioterapeuta Marcelo Semiatzh, da clínica Força Dinâmica, lembra a dedicação do colega aos atletas do alto rendimento: “Quantos atletas o Fernando não enfiou no fundo da Find Yourself, atletas que não tinham onde morar, vindo da Bahia, de outros lugares. Usava a cozinha da empresa dele, buscava ajuda para garantir a alimentação dos corredores. Foram vários, dessas pessoas muitos viraram campeões. A gente deve isso ao lado humano do Fernando, ele realmente gostava do que fazia e sabia que esse era o jeito… Tratava todos esses atletas como parceiros dele em uma relação de muita confiança e muito respeito, como deve ser a relação com os atletas profissionais. O Fernando sempre procurava abrir portas para quem quisesse trabalhar direito, e ele ajudava em todos os sentidos.”

Um desses atletas foi o campeão pan-americano dos 1.500 metros, Leandro Prates, também tricampeão brasileiro nos 1.5000 m e nos 3.000 m, dono de mais de 300 pódios na carreira: “Todos esses títulos só foram possíveis porque, lá no início de minha carreira, eu tive uma pessoa que acreditou em mim, e essa pessoa foi o Fernando. Quando eu procurei, ele que me atendeu, de imediato passou treinos, não quis cobrar, e a gente começou nessa parceria. Ele acreditou em mim, viajava comigo para as competições. Eu morei no escritório da Find, a gente ficava muito tempo junto. Ele fazia muitas perguntas, queria saber de tudo, foi um período em que aprendi muito com ele.”

O aprendizado, o carinho, a preocupação com os outros. Luiz Fernando jamais seria uma pessoa a dizer “E daí?” para o sofrimento alheio, para as dezenas de milhares de mortes provocadas pelo desrespeito às normas científicas e às orientações das entidades médicas no trato da pandemia no Brasil. Parou as atividades de sua empresa logo no início da pandemia e orientava os alunos para que se cuidassem, se protegessem, defendessem a saúde e a vida.

São lições que precisam ser guardadas como força e incentivo para seguir em frente, como disse Cleni Bernardi na sessão de homenagem: “Ele trabalhava com amor. As mensagens que eu tenho recebido dos alunos, de tanta gente, são um combustível para que eu consiga respirar e ver que a vida vai continuar. Tenho medo, mas quero continuar a Find. Quero continuar o sonho dele, levar esse amor, cuidar das pessoas. Vou tentar pelos alunos que a gente tem hoje, pelos sonhos de Luiz Fernando, que foi um realizador de sonhos”.