“A pandemia está fora de controle nos Estados Unidos, e logo também estará também no Brasil. Ela ainda não mostrou a sua face mais mortífera. Estamos no limiar do que vai ser o verdadeiro massacre nessa pandemia, porque os países africanos só agora estão começando a ser atingidos, assim como as favelas da Índia e do sul da Ásia”. A avaliação é do escritor e teórico urbano Mike Davis ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo acima e inscreva-se no TUTAMÉIA TV). Nesta entrevista, ele avalia as causas da crise do coronavírus, seus desdobramentos para o capitalismo e os impactos para a política global.
“Nós estamos vendo um declínio acelerado do prestígio e da liderança dos Estados Unidos, enquanto os chineses estão ocupando a vaga. Eles estão oferecendo ajuda médica e equipamentos para países africanos e no Oriente Médio. Eles são os maiores parceiros da Itália, neste momento, na ajuda médica. Trump, nesse aspecto, está desintegrando o Império Americano. A reivindicação de liderança moral nas crises, que os Estados Unidos costumavam reivindicar, foi abandonada pelo presidente Trump. Apenas Cuba e China responderam aos apelos de ajuda médica até agora. Hoje, a liderança moral, a liderança humanitária foi tomada pela China. É uma oportunidade incrível para os chineses reivindicarem a liderança moral da humanidade”, afirma.
Davis enfatiza também o papel de Cuba nessa crise:
“O país onde o internacionalismo é o mais profundo é Cuba. Cuba usa seus incríveis exércitos de médicos, enfermeiros e pesquisa científica como uma maneira de conseguir recursos, por causa do abominável bloqueio econômico imposto pelo governo norte-americano. Os médicos cubanos estão sempre na linha de frente, sofrem baixas enormes, como foi no caso do Ebola. Para mim, eles são os verdadeiros heróis deste mundo, o modelo para o que deveria ser feito. Cuba já fez milagres para um pequeno país em termos de conquistas e de pesquisas. Uma das reivindicações do mundo hoje é que todos os bloqueios e embargos, que são barreiras à resposta à pandemia e à melhora das condições de saúde, sejam derrubados. Para que os remédios possam chegar em qualquer lugar”.
Segundo Davis, vivemos numa era de pandemias:
“Você se pergunta porque isso está acontecendo. É o resultado da globalização capitalista em três aspectos. Primeiro: a destruição das florestas tropicais por empresas multinacionais para a produção agrícola, quebrando as barreiras naturais entre nós e os animais selvagens, com os quais ao longo da história apenas tivemos contatos ocasionais. Esses animais estão em contato com os maiores reservatórios de coronavíirus, que estão em morcegos e aves selvagens. Segundo: a mudança da produção agrícola, que passou da agricultura familiar para o agronegócio, a agricultura em escala industrial. Quando você coloca cem mil porcos em uma única área, ou um milhão de galinhas, você basicamente está criando aceleradores de partículas para a distribuição de fluidos residentes nesses animais, criando ambiente potencial para a eclosão de epidemias. Terceiro, e mais importante, é a destruição do investimento em saúde pública. Não apenas em atendimento médico, mas em condições sanitárias. Até que as pessoas tenham água limpa e banheiros, elas não passam de alimento para o desenvolvimento dessas pandemias”.
O escritor segue: “Essa crise levanta a questão: a globalização capitalista é sustentável em termos biológicos? O que estamos vendo agora é cada país buscar sua própria saída local, cuidando apenas dos seus interesses, com apenas a exceção de Cuba e China, que estão de fato buscando ajudar outros países. A resposta à pergunta é: possivelmente não”.
TRUMP CRIMINOSO; FARMACÊUTICAS RENTISTAS
Aos 74 anos, Mike Davis fala ao TUTAMÉIA desde São Diego, na Califórnia (EUA). Relata sua rotina de quarentena, orientando alunos, dando entrevistas e cuidando das atividades domésticas com a família. Fala dos que estão longe, dos filhos adolescentes em casa, de amigos pegos em trânsito em meio ao medo e à insegurança trazidos pela doença. Professor de escrita criativa na Universidade da Califórnia, em Riverside, ele integra o conselho editorial da “New Left Review”. Na adolescência, teve que deixar os estudos por causa de uma grave doença do pai. Trabalhou como açougueiro, motorista de caminhão e militou no Partido Comunista da Califórnia meridional antes de voltar aos bancos escolares, aos 28 anos. Na Universidade da Califórnia estudou economia e história. Publicou, entre outros, “Ecologia do Medo”, “Holocaustos Coloniais”, “O monstro Bate à Nossa Porta” (Record) e “Planeta Favela” (Boitempo).
Para ele, uma das lições da pandemia foi deixar escancarada a necessidade de haver um sistema nacional público universal de saúde. Ele condena a forma como Trump está agindo:
“Trump disse que prover equipamentos para os estados não era responsabilidade federal. Provocou competição terrível entre os estados e municípios para obter os recursos por eles mesmos. O comportamento de Trump nessa crise tem sido criminoso. Ele soube de antemão da crise, recebeu informações sobre isso e demitiu as pessoas que fizeram os relatórios. Reduziu recursos para a saúde, vem tentando acabar com o Obamacare, ignorando relatórios de seus conselheiros econômicos que, desde o ano passado, já advertiam que o sistema não seria capaz de encarar uma pandemia”.
Davis ataca também as grandes empresas farmacêuticas que não se interessam em desenvolver antivirais, que exigem grandes investimentos e têm receita incerta, e se concentram em produtos de alta rentabilidade, como os destinados à disfunção erétil.
“As grandes farmacêuticas abdicaram de buscar vacinas, porque isso não é rentável. Já houve dois ataques de epidemia por tipos de coronavírus. Então, já houve tempo e oportunidade para que fosse desenvolvida uma vacina. Um projeto está guardado em freezers há quatro anos, no Oriente Médio, porque ninguém se interessou por ele. Por que desenvolver uma vacina que pode ou não ser necessária? Ou, se for necessária, será no futuro? O desenvolvimento de remédios antivirais exige recursos tremendos, não são considerados rentáveis. As empresas defendem o seu monopólio, dizendo que são essenciais para o desenvolvimento de produtos. Estão, na verdade, se tornando rentistas. Elas investem em remédios para disfunção sexuais, que são tremendamente lucrativos, e não em vacinas que podem ajudar a população que vive em favelas”, diz Davis.
Nesse quadro, falta a ação do Estado, analisa ele. “O governo nunca usou seus poderes para forçar as empresas a fazer isso. Os EUA são o superpoder em recursos médicos, pesquisas etc. E, no entanto, o “New York Times” tem de gastar uma página explicando como fazer mascaras médicas em casa porque as enfermeiras e atendentes da área e saúde não estão recebendo o equipamento básico de proteção. Isso é baixa tecnologia. Estamos de volta aos anos 1600, cada um fazendo suas próprias máscaras”.


RISCO PARA A DEMOCRACIA; INTERNACIONALISMO NECESSÁRIO
Ao TUTAMÉIA, Mike Davis fala dos impactos econômicos da pandemia. Ressalta que todo o sistema de produção atual, baseado em cadeias de produção espalhadas pelo mundo, está sob ameaça. Enfatiza que os mais pobres, os trabalhadores precarizados, os que não têm renda e saneamento básico serão os mais atingidos na crise.
“O capitalismo tem jeito de se salvar, de se sair bem disso tudo. Será forçado a fazer coisas, a tomar medidas que talvez preferisse não tomar. Tudo isso vai demorar anos, e, provavelmente, não vai trazer benefícios para as condições sanitárias de bilhões de pessoas”, afirma. E observa:
“Nós não vamos saber a real taxa de letalidade dessa pandemia até que ela atinja as bordas do capitalismo, os países africanos. Quando se fala da gripe espanhola, que na verdade foi americana, se esquecem de dizer que 60% das mortes foram na Índia Ocidental, sob o domínio do Império Britânico. O povo era miserável, morria de fome. Mesmo quando a população sofre apenas de desnutrição, isso já ataca seu sistema imunológico severamente. Então cerca de 20 milhões de pessoas, talvez 22 milhões de pessoas morreram na Índia. E a gripe espanhola foi modificada por causa disso, por causa das condições sanitárias na Índia. Então, o que vamos ver nas favelas da África –onde estão 70% da população urbana–, 40% da população não têm acesso a água ou recursos sanitários? Como vão lavar as mãos, se nem sequer têm água? Como podem praticar o isolamento social? Além disso, há milhões de pessoais infectadas com o vírus da Aids na África sub saariana. Podem surgir infecções gastrointestinais, que são muito mais mortíferas do que as respiratórias. Então a taxa de mortalidade por ter uma mudança de ordem de grandeza”.
Davis prevê a possibilidade de surgimento de um novo organismo, que transforme ou substitua a OMS, que seja capaz de analisar o desenvolvimento de doenças e, talvez, estocar suprimentos em certas áreas cruciais do mundo. “Talvez haja mais investimentos em vacinas. Pequenas companhias que querem se apresentar como inovadoras podem se interessar nisso. O capitalismo busca novas oportunidades, novas formas de acumulação. Para algumas empresas, a crise é uma terra de oportunidades”, diz.
No terreno político, ele vê perigo no aumento do poder de governos e risco de avanço do autoritarismo. “Isso é a repetição do 11 de Setembro. A Guerra ao Terror criou a oportunidade perfeita para os governos criarem estados de emergência, que depois não foram desativados. A aprovaram leis draconianas, que seriam temporárias, mas que se tornaram permanentes. A mesma coisa está acontecendo agora. Exemplo disso é em Israel. O sistema de segurança e espionagem de Netanyahu está usando a desculpa de defender a saúde para espionar cada casa. Nós todos vivemos em sociedade de vigilância ou embrião disso. Esse é um risco enorme”, adverte.
Para enfrentar essa ameaça à democracia, Davis defende protestos e luta:
“Sindicatos não podem abdicar de lutar, de fazer protestos. Nós só podemos fazer isso se mantivermos o internacionalismo. O internacionalismo sempre foi a melhor qualidade das classes trabalhadoras. O internacionalismo tem de ser organizado, especialmente em países em que foi sabotado”.