“As notícias que vêm do Norte são um pequeno ânimo para as forças democráticas no Brasil. A vitória de Biden tira ventilador de Bolsonaro, que não vai ter um amigo na Casa Branca, um apoio, e isso é importante. A burguesia brasileira ainda não se convenceu de que seria útil se libertar do Bolsonaro. Isso por causa do Paulo Guedes, as reformas. Fico surpreendido porque o Brasil não vai para rua. Uma destituição precisa de rua, uma mobilização que realmente significasse uma ameaça para esse senhor que realmente tem que sair. Não é só por incompetência. Há intenção, um darwinismo social. Bolsonaro encontrou uma forma de se libertar daquelas populações que ele despreza: as pobres e negras. Não haverá destituição de Bolsonaro sem o movimento popular. Pacífico, com regras de segurança, inventem o que quiserem!”.

O desabafo é do sociólogo Boaventura de Sousa Santos em entrevista ao TUTAMÉIA. Professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra e autor, entre muitos outros livros, de “Esquerda do Mundo, Uni-vos”, ele fala de seus estudos sobre as alianças das esquerdas do planeta. E declara: “As esquerdas estão começando a se dar conta que estamos num mundo novo. Um mundo pré-fascista e, portanto, as esquerdas têm que, realmente, sem perder a sua identidade, unirem-se de uma maneira pragmática. Se o fizessem, já estaríamos hoje melhores”.

E segue: “Estamos assistindo a coisas absolutamente caricatas no Brasil, como essa nota do Augusto Aras sobre o Estado de Defesa. É quase um convite aos militares: tomem conta disso. Quando um procurador faz isso, eu não sei onde está a democracia brasileira. Quase tenho vergonha de dizer essas coisas. Internacionalmente, sabe a pergunta que mais me fazem? Se esse país destituiu a presidenta Dilma com aquelas provas, o que é que é preciso mais para destituir esse presidente? O que é que um presidente precisa fazer ainda pior para que possa ser destituído?”.

Na sua visão, “a única maneira de afastar Bolsonaro é fazer a destituição pelo impeachment agora. Pelo seu comportamento genocida nessa pandemia. Sem oxigênio em Manaus! Francamente! É evidente que esse senhor, se for candidato, não vai aceitar a derrota”.

O sociólogo observa o debate na burguesia brasileira sobre quem vai ser o candidato em 2022. Provavelmente João Doria, diz. Daí, pensam se é melhor partir para o impeachment, ou deixar apodrecer o governo. “É perigoso. A burguesia brasileira é muito preguiçosa também para pensar. Não faz bons cálculos políticos. Dá muito tiro no pé –e esse pode ser um deles”.

Dos arredores de Coimbra, em Portugal, Boaventura fala ao TUTAMÉIA sobre as perspectivas do governo Biden, o que pode mudar na relação dos EUA com o Brasil, a América Latina, a China. Trata da extrema direita, dos movimentos de esquerda, das divisões na burguesia norte-americana. Aborda temas de seu novo livro, “O Futuro Começa Agora, da Pandemia à Utopia”, lançado pela Boitempo no Brasil. Acompanhe a íntegra da entrevista no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV. A seguir, alguns pontos da conversa:

TRUMP É PRODUTO DA CRISE

Durante 35 anos, vivi a na metade do ano, entre agosto e dezembro ou janeiro, nos Estados Unidos. Assisti à evolução da situação que levou a Trump. A nova geração de presidentes populistas de direita e ultradireita tem essa característica: eles ascendem ao poder democraticamente, mas não o exercem democraticamente, nem o deixam democraticamente. Os brasileiros podem saber o que acontecerá em 2022 se o sr. Bolsonaro for candidato e, se por acaso, ele não ganhar as eleições e achar que as ganhou.

Os EUA são um país extremamente dividido. Fundamentalmente porque, depois da Segunda Guerra Mundial, formaram esse mito do milagre americano, da terra das oportunidades, da ascensão social, das classes médias. A partir dos anos 1970, o sonho americano começou a dar sinais de desagregação. A crise veio com a estagnação dos salários, que estão estagnados praticamente desde então. A partir dos anos 80, vem a avalanche neoliberal que vai levar à desindustrialização quase total dos EUA.

O sonho americano acabou em pesadelo americano para muitos americanos. A ideia de oportunidade, de que com mérito se chegava ao topo, deixou o grosso da população excluída. Os que tinham ascendido à classe média estavam a perder. Um grande sonho, uma grande expectativa resultou numa grande frustração. Uma parte da população é extremamente frustrada. Essa frustração poderia ter sido aproveitada pela esquerda ou pela direita. Na tradição dos EUA, nunca é a esquerda que se aproveita da frustração. Foram a extrema direita e os grupos armados que se aproveitaram.

Trump não é um produtor dessa crise. Ele é um produto da crise. Claro que ele a aprofundou.

AMÉRICA LATINA NÃO TERÁ AMIGO NA CASA BRANCA

Boaventura vê algum sinal de esperança no fato de Biden ter se preocupado em montar em gabinete diversificado, com participação de mulheres, negros, latinos, LGBT. Mas, politicamente, enxerga a equipe com reservas. “Parte desses homens e mulheres foi treinada por Obama. Essa equipe é um bocado intervencionista. A América Latina não pense que agora vai ter um amigo na Casa Branca. Não tem. Os venezuelanos não têm um amigo na Casa Branca. Os cubanos não têm um amigo na Casa Branca.

É uma política para além dos governos. Está no complexo militar dos EUA, como no caso da guerra fria com a China. Tudo isso vai continuar. Será provavelmente mais sutil. Às vezes nem tanto. Não foi o Obama que colocou escuta no escritório da presidente Dilma?

No Oriente Médio, prevejo alguma mudança. Biden não vai ser tão lacaio de Israel, tão dedicado à causa. Biden pode moderar um pouco porque sabe que a comunidade judaica dos EUA também está dividida.

Biden tem uma dívida com Obama e quer desfazer toda a animosidade que foi criada em relação ao Irã.

Com a China, vai mudar o tom, baixar o nível da retórica. A luta comercial vai continuar, porque é uma coisa histórica. Até 1750, a China era a grande potência econômica. Os reis europeus vestiam roupa chinesa; a louça era de lá. Tudo se produzia na China, como agora. Segundo a CIA, a China será, em 2030, provavelmente antes, a primeira economia do mundo. É uma movimentação histórica que dificilmente os EUA podem tolerar. Vão usar as armas que tem. Eles têm avanço tecnológico em alguns sistemas de internet, de comunicação, como o androide. Têm zonas de influência. Imaginem se agora existissem os Brics! [O ataque aos Brics] começou com o golpe contra Dilma.

GUERRA CIVIL NÃO ACABOU

Os governos de extrema direita ou de direita em todo o mundo, neste momento, são muito bons em destruir; são muito maus em construir. Quando vem uma crise como essa da pandemia, obviamente mostram toda a sua incompetência. Foram negacionistas. Aumentou mais a frustração.

Mas, por mais barbaridades que Trump fizesse, ele tinha uma base de apoio de fanáticos, que se calcula pode chegar aos 30 milhões. É muita gente. Há 300 milícias, pelo menos, de grupos organizados militares armados. Esses grupos de brancos supremacistas cresceram depois da chegada de Obama ao poder.

Agora, Biden chega com um discurso de conciliação, de urbanidade, de volta às instituições democráticas.

Na posse de Biden, se se pudesse fazer uma sociologia visual, se poderia dizer que houve Intenção dramática de restituir a normalidade ao país no meio de um teatro de guerra. Porque ali tinham mais tropas do que as que estavam no Iraque.

A guerra civil não acabou. Biden pode ter declararado simbolicamente o seu final. Mas ele deverá trabalhar muito para que se neutralize o perigo Trump, que foi abalado, mas não está totalmente derrotado.

Trump é um risco porque ele tem um grupo de seguidores que não acredita no sistema e que está disposto a tudo –como vimos no capitólio. Se ele for destituído, punido e proibido de voltar a concorrer a cargos públicos, ele fica neutralizado como chefe de um partido político. O que não o impede de criar um partido político. É uma incógnita. É muito difícil furar o bipartidarismo nos EUA.

CAPITAL FINANCEIRO, VALE DO SILÍCIO E INDÚSTRIA

Trump foi bom para os mercados financeiros, não tributou, cortou impostos. É o capital mais retrógrado o financeiro, o que não tem preocupação com os trabalhadores. Trump teve apoio e deve ter apoio caso regresse.

O capital está com que estiver no poder, desde que não lhe crie ondas. Não devem estar muito preocupados com Biden, porque não acredito que ele vá fazer ataques ao capital financeiro.

As empresas de tecnologia da informação tiveram uma lua de mel com o Trump. Seus tuítes, seus milhões de seguidores foram uma promoção para o Twitter, o Facebook, que ganharam muito dinheiro com ele.

Twitter e Facebook assistiram e contribuíram para a destruição da democracia em muitos países. Sem fazer nada. Porque não era a democracia deles que estava em causa. Bolsonaro é um produto das fake News, do Twitter, das redes sociais. Na Índia, a mesma coisa. Eles colaboraram com a destruição da democracia enquanto não lhes tocava em casa. Aí pararam. Isso mostra o desequilíbrio de poder que existe nesse momento nessa área no mundo. Esse setor contou com Trump.

O capital industrial está muito degradado nos EUA e algum deles gostam dessa guerra fria com a China, que é manipulada politicamente. Esse capital está mais dividido: quer a liberação do comércio e também quer se defender.

GUERRA ESPACIAL

Segundo a “Foreign Affairs”, dentro de 10 anos é possível haver um conflito armado dos EUA com a China. Ambos estão se preparando para a guerra espacial. Essa próxima guerra não é regular. Será uma guerra cibernética, no ciberespaço. Os dois grandes sistemas de patenteamento em 2019 foram para organismos vivos e para soldados robôs. As próximas guerras serão conduzidas por robôs.