“Acredito que ainda vão ocorrer muitas tentativas de impedir que Lula concorra nas próximas eleições, esforços sérios nesse sentido, em parte por causa do intenso ódio de classes que existe no Brasil, que é muito chocante. Alguns setores não querem saber de ter uma pessoa que nem fala português direito assumir uma posição de poder, esse não é o lugar para um trabalhador. Além disso, claro, eles não gostaram das políticas de Lula. De qualquer forma, Lula é hoje um grande e poderoso estadista. Acho que, se ele conseguir driblar as forças que tentam bloqueá-lo, é uma saída para o Brasil. É uma esperança.”

Essa é a avaliação do filósofo e linguista Noam Chomsky, principal intelectual do planeta, em entrevista ao TUTAMÉIA nesta segunda-feira, 29.3, no dia de expurgos em série no governo Bolsonaro, depois de uma semana em que Lula voltou a ter presença marcante na cena política.

Na conversa –clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV–, Chomsky falou sobre a situação do planeta na pandemia, os primeiros meses do governo Biden, a ação continuada da extrema direita e a necessidade de cooperação internacional em defesa da vida.

“As crises que o mundo enfrenta são internacionais, atingem a todos. Sempre foi assim, mas hoje está mais claro. Não há fronteiras para a pandemia, não há fronteiras para o aquecimento global, não há fronteiras para a disseminação dos armamentos nucleares, não há fronteiras para a deterioração da democracia no mundo. Tudo isso é uma questão contagiosa, que deve ser enfrentada de forma cooperativa.”

Não é isso que acontece, nem de longe, diz Chomsky, apontando a ação do governo Trump durante a pandemia: “Eles agiram para maximizar as mortes e o sofrimento na América Latina, para garantir o domínio do hemisfério. Isso não é nada novo, mas hoje toma uma forma particularmente selvagem. Recentemente, a principal consultora do governo Trump para resposta à pandemia, Deborah Birx, veio a público dizer que centenas de milhares de mortes poderiam ter sido evitadas se o governo Trump tivesse dado a resposta correta no início da pandemia”.

Chomsky alertou que o trumpismo não é passado, apesar da derrota de Trump. Elogiou a ação do governo Biden no enfrentamento à pandemia e na política interna, que considerou mais avançada do que ele esperava, mas afirmou que a política externa dos Estados Unidos continua a mesma, militarista e beligerante. “Coisa de lunático”, diz.

Acompanhe a seguir a transcrição dos principais trechos da conversa.

FALTA DE VACINAS NO BRASIL É ESCÂNDALO INTERNACIONAL

O Brasil é no momento o líder no desastre mundial. Os EUA têm mais mortes no total, mas algumas coisas já estão sendo feitas aqui: agora que o governo Trump caiu, o novo governo está levando à frente um programa de vacinação razoável. O problema nos Estados Unidos é que o partido Republicano, bem no estilo de Bolsonaro, não está cooperando. O estado em que vivo, o Arizona, tem uma das mais altas taxas de infecção, e o governador, que é um republicano trompista, acaba de revogar a obrigatoriedade do uso de máscaras e de determinar a abertura das fronteiras. Quando você tem esse tipo de conflito, muita gente simplesmente não vai fazer nada. Quase metade dos republicanos afirmam que não querem ou não vão tomar a vacina. Eles recebem um tipo de mensagem dos líderes de seu partido e outra, diferente, da comunidade científica.

O mesmo acontece no Brasil, mas de forma mais extremada. A falta de vacinas no Brasil é simplesmente um escândalo internacional, especialmente quando se sabe que o Brasil foi um país conhecido por seus maravilhosos institutos de pesquisas biológicas, pelo seu enorme sucesso em programas de vacinas no passado. Era um líder mundial. Agora está no fundo do poço, e nós sabemos quem é o responsável por isso.

EUA PROVOCAM SOFRIMENTO E MORTES PARA MANTER SUA DOMINAÇÃO

O que o governo Trump fez com o Brasil é muito chocante. Há poucas semanas foi divulgado o relatório anual do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, agência federal que trata da saúde, e no relatório relativo às atividades do ano passado, há uma descrição do que o Departamento de Saúde fez na América Latina. Informa que a embaixada do Estados Unidos no Brasil pressionou o governo brasileiro a rejeitar a vacina russa, ainda que as autoridades sanitárias do ocidente a vissem como equivalentes às vacinas dos países ocidentais. E a razão para isso era tentar impedir ou minar a influência russa no hemisfério.

Eles também pressionaram o governo do Panamá, que também está sofrendo severamente com a pandemia, a parar de usar voluntários cubanos nas áreas rurais, como aconteceu no Brasil com os médicos cubanos.

Eles agiram para maximizar as mortes e o sofrimento para garantir o domínio do hemisfério. Isso não é nada novo, mas hoje toma uma forma particularmente selvagem (brutal). Recentemente, a principal consultora do governo Trump para resposta à pandemia, Deborah Birx, veio a público dizer que centenas de milhares de mortes poderiam ter sido evitadas se o governo Trump tivesse dado a resposta correta no início da pandemia. Mas as falhas do governo, um dia é uma gripe, no outro é algo diferente, no outro diz que é só mimimi das pessoas…

NEGACIONISMO

No Brasil, aconteceu coisa semelhante, pois Bolsonaro seguia a linha de Trump, imitando… Lembrando a frase de Marx sobre a tragédia que se repete como farsa, havia uma tragédia nos Estados Unidos, uma farsa no Brasil. De qualquer forma, é uma situação horrível.

O que pode acontecer? Quem sabe? O que parece estar acontecendo hoje no governo brasileiro é uma espécie de expurgo, gente sendo demitida, gente saindo.

Nos Estados Unidos, há sinais de melhora, mas há o problema do partido Republicano, que está tornando as coisas mais difíceis, divulgando informações falsas, confundindo a sua própria base, muitos deles agora se recusam a tomar vacina, o que será um desastre. Não dá para enfrentar a pandemia se 40% da população dizem que não vão tomar a vacina, não vão colocar máscaras.

TRUMP NÃO É PASSADO

Trump não é passado. Ele não é. Ele controla a base de eleitores do partido republicano. Os donos do partido, os ricaços, os poderosos, os doadores, eles nunca gostaram muito do Trump, mas estão dispostos a tolerá-lo porque ele estava enchendo seus bolsos de dinheiro. Todo o programa legislativo de Trump foi simplesmente enriquecer os ricos para muito além de seus sonhos mais ambiciosos, prejudicando todos os demais. Então eles se dispuseram a aceitar Trump.

Mas isso acabou no dia 6 de janeiro. O ataque ao Capitólio foi demais mesmo para eles, que decidiram cortar o apoio. Mas então aconteceu algo interessante: os senadores, que necessitam é claro do apoio dos doadores e dos poderosos do partido, tiveram de se enfrentar com a massa trumpista, que é quem dá os votos. Então eles ficaram num mato sem cachorro: os chefões mandavam que se livrassem de Trump; mas, se fizessem isso, não teriam os votos da massa trumpista, pois Trump controla o eleitorado.

É interessante observar o senador Mitch McConnell, uma das pessoas mais poderosas do país, o fazedor de dinheiro para os republicanos, principal fonte de acesso a doadores. Por outro lado, Trump tem os eleitores, então ele não sabe bem para onde ir, o partido está dividido. O que eles estão planejando é tornar o país ingovernável, impedir que nenhuma lei seja aprovada, que o Congresso fique parado. Foi o que tentaram com a recente lei de estímulo econômico na pandemia, que foi aprovada. A maioria dos republicanos é a favor da lei e sabe que seus eleitores querem a lei, mas, mesmo assim, cem por cento dos republicanos. Essa foi a ordem do partido.

E isso é o que vai acontecer com todas as propostas do governo democrata para tentar tratar da crise: os republicanos vão fazer todo o possível para bloqueá-las, esperando que o país fique ingovernável, que não seja possível enfrentar a crise, e daí eles possam culpar os democratas pelo fracasso e voltar em 2022, o mesmo ano das eleições no Brasil.

POLÍTICA EXTERNA DE BIDEN

O governo Trump foi frequentemente criticado por não ter uma estratégia geopolítica, mas isso não é exatamente correto. Havia uma estratégia bem definida –se Trump a entendia ou não é outra questão. A estratégia era construir uma Internacional reacionária, com a participação dos mais reacionários partidos e governos do mundo. No hemisfério ocidental, pode se ver claramente que Bolsonaro era sua base mais importante, por governar o maior país, o país mais importante, e ser um seguidor garantido, fiel a Trump.

Vai ser interessante ver o que Biden faz em relação a isso. Por enquanto não há mudanças. A política interna de Biden está sendo muito boa, melhor do que o esperado, mas a política externa está um desastre, em alguns pontos até pior. A política de confronto com China e Rússia é simplesmente uma loucura, não tem o menor o sentido.

As crises que o mundo enfrenta são internacionais, atingem a todos. Sempre foi assim, mas hoje está mais claro. Não há fronteiras para a pandemia, não há fronteiras para o aquecimento global, não há fronteiras para a disseminação dos armamentos nucleares, não há fronteiras para a deterioração da democracia no mundo. Tudo isso é uma questão contagiosa, que deve ser enfrentada de forma cooperativa.

Os chineses já manifestaram seu desejo de cooperação, mas foram chutados na cara, primeiro por Trump e agora por Biden. A concepção militar, divulgada em 2018, de que os Estados Unidos precisam ser poderosos o suficiente para enfrentar uma guerra contra a Rússia e a China ao mesmo tempo, é simplesmente lunática. Não há palavras para isso. Qualquer um que tenha o mínimo de entendimento de questões diplomáticas e da questão nuclear sabe que, se qualquer país fizer um ataque nuclear a uma potência nuclear, é o fim para todos nós.

É coisa de lunático! Mas as coisas estão se movendo nessa direção. De fato, Biden acaba de anunciar um aumento das forças militares dos EUA em base na região que chamam de indopacífico, com mais mísseis. Eles estão aumentando poder militar num momento em que deveriam estar se direcionando para negociações diplomáticas. É uma ação suicida.

BOICOTE DOS SUPER-RICOS ÀS VACINAS

Muitas das políticas em andamento são suicidas, mesmo em países que costumávamos considerar moderadamente civilizados, como na União Europeia. É surpreendente ver como esses países estão agindo na questão das vacinas. Cada país rico está tentando monopolizar a vacina. Muitos deles, incluindo o Canadá e os Estados Unidos, vão ter muito mais vacinas do que podem usar; eles estão simplesmente armazenando.

Todos eles entendem, suas lideranças entendem muito bem que, se as vacinas não forem distribuídas para os países pobres, para a África, a Ásia, a América Latina, o que vai acontecer é que vão surgir mutações do vírus, como já está acontecendo agora, mutações mais letais vão aparecer e destruir a todos nós. Eles sabem isso, mas se recusam a fazer qualquer coisa a respeito.

De fatos, os países realmente ricos, como os Estados Unidos, a Suíça e outros estão trabalhando contra o projeto que vem sendo chamado de “vacina do povo”, um esforço global para distribuir vacinas de forma ampla no mundo, tanto por razões éticas como por razões de sobrevivência. Os países onde estão as grandes indústrias farmacêuticas se recusam a isso, de olho nos lucros; eles preferem garantir que suas empresas estejam inundadas de dinheiro, os super-ricos precisam ficar ainda mais ricos, mesmo que isso signifique o suicídio de toda a humanidade.

INTERNACIONALISMO DE CUBA

Vejam as pequenas coisas que acontecem, algumas vezes mais reveladoras do que as grandes atrocidades. Por exemplo, a ação da embaixada dos Estados Unidos para evitar que o Brasil conseguisse a vacina russa e para fazer com que o Panamá desistisse da ajuda de Cuba, e o continuado bloqueio contra Cuba.

Lembrem-se também do início da pandemia, em março do ano passado, quando o norte da Itália foi brutalmente atingido. Eles receberam ajuda de algum dos países vizinhos? Não, tiveram de buscar apoio de uma “superpotência” do outro lado do Atlântico, Cuba, que mandou médicos, remédios e equipamentos para ajudar no combate à pandemia no norte da Itália.

De fato, o internacionalismo de Cuba é surpreendente, impressionante. Não importa a sua posição política, você pode pensar o que quiser de Cuba, mas seu internacionalismo é espetacular. E eles são punidos por isso! É por isso que os Estados Unidos mantêm o bloqueio e as sanções: a ideia é punir a população o quanto for possível. E as sanções são internacionais: todos têm de obedecer, gostando ou não, sob o risco de ser expulso do sistema financeiro internacional.

FORÇAS ARMADAS

Nos Estados Unidos, as Forças Armadas estão sob controle dos civis. Não temos golpes militares, não temos dias de celebração de golpes militares e da imposição de estados policias de estilo neonazista. Vocês têm. Um dos erros graves da administração Lula foi não ter implementado um programa cultural e educacional; eu não acho que muita gente no Brasil saiba muito sobre o que aconteceu no regime militar.

A impressão que eu tenho, aqui de longe, é que, no Brasil, os militares são vistos como salvadores da nação, enquanto aqui todos sabem, e os chefes militares entendem isso, que as Forças Armadas estão sob o comando dos civis.

LULA

Eu acredito que ainda vão ocorrer muitas tentativas de impedir que Lula concorra nas próximas eleições, esforços sérios nesse sentido, em parte por causa do intenso ódio de classes que existe no Brasil, que é muito chocante. Alguns setores não querem saber de ter uma pessoa que nem fala português direito assumir uma posição de poder, esse não é o lugar para um trabalhador. Além disso, claro, eles não gostaram das políticas de Lula.

É interessante ver o que aconteceu no mercado financeiro, assim que saiu a decisão sobre Lula, apesar de ele ter, em seu governo, favorecido o mercado –um pouco demais para o meu gosto. Ele ofereceu tudo que eles queriam, mas não foi o suficiente, nunca é o suficiente.

A pessoa que eles amam é Paulo Guedes, com sua política de privatizar tudo, dar tudo para os investidores estrangeiros. Isso é perfeito!

O que os mercados financeiros temem é que, com Lula, seja abandonado o que eles chamam de reforma financeira, reforma econômica, uma expressão que significa dar tudo para os ricos, incluindo investidores estrangeiros que podem comprar o país. Isso é o que eles chamam de responsabilidade econômica, política responsável.

Lula tem conquistas muito notáveis. E isso não é a minha opinião, mas sim a do Banco Mundial. Em 2016, o Banco Mundial, que não é exatamente uma instituição de esquerda, fez uma análise aprofundada da economia brasileira classificou os anos Lula como “década de ouro”: enorme redução da pobreza, aumento da inclusão social. Mas os ricos do Brasil não querem isso, eles querem políticas como a da privatização total.

De qualquer forma, Lula é hoje um grande e poderoso estadista. Acho que, se ele conseguir driblar as forças que tentam bloqueá-lo, é uma saída para o Brasil. É uma esperança.

Veja o Brasil no cenário mundial. Durante os anos Lula, o Brasil era o país mais respeitado do mundo, literalmente, honrado em toda a parte. Também a voz do Sul global, unificando o hemisfério sul.  E veja a atitude em relação ao Brasil de hoje: um país patético, do qual as pessoas riem. É uma enorme diferença, e isso pode ser atribuído largamente à diferença entre Lula e Bolsonaro.