Maria Rita Kehl caminha por São Paulo e constata: o Brasil adoeceu. Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, a psicanalista conta como identifica mal-estar e depressão na sociedade. “Todas as pessoas, não só de esquerda, mas as que prezam a dignidade do ser humano, o direito do ser humano, a diminuição da desigualdade, o respeito ao outro, todas as pessoas, mesmo que não sejam de esquerda, devem estar deprimidas com a situação e a eleição”, diz.

Para ela, o presidente de extrema direita vai “reduzir os benefícios sociais que tiraram o Brasil do mapa da fome. O Brasil só saiu do mapa da fome no governo Lula. E voltou. Além desse horror todo, o que mais me assusta, talvez porque eu seja psicanalista, é o efeito que está tendo sobre a sociedade. Porque uma parte está muito desencantada, muito desiludida, muito sem ver saída. E outra parte está se sentindo autorizada na sua violência, nos seus preconceitos, na sua intolerância, na sua grosseria”.

Diz mais: “O problema é que talvez haja um mal-estar tão grande de olhar os que ficaram do lado menos favorecido. Deve ter aqueles que não estão nem aí mesmo. E que acham que o bom mesmo é que ‘eles se danem todos, eu quero o meu’. Mas também deve ter gente que começa a racionalizar, por causa desse mal-estar. Passa pala Paulista no domingo. Um monte de gente passeando, que legal. E um monte de gente, cada vez mais, pedindo dinheiro. E você vê que elas foram para a rua ontem. Não é aquela pessoa que bebia há séculos, está lá só com o cobertor, sem tomar banho há meses. São pessoas que foram para a rua ontem”.

Na conversa, ela lembra dos questionamentos que ouviu na rua quando era integrante da Comissão da Verdade –um sintoma do que estava por acontecer– e trata dos efeitos da longa escravidão do Brasil:

“É uma sociedade que cresceu com uma elite que se beneficiou, antes da industrialização, da exploração de trabalho escravo. Isso cria uma sociedade perversa na raiz. Os dois presidentes que efetivamente praticaram algumas políticas que diminuíram um pouco a injustiça social foram Getúlio e Lula. Um se matou e o outro está preso. É como se o Brasil não aguentasse isso”.

A seguir alguns trechos da conversa, que você pode acompanhar na íntegra no vídeo acima.

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TUTAMÉIA – ESTAMOS NUMA DEPRESSÃO GERAL? QUAL O SENTIMENTO NO BRASIL NESSE MOMENTO QUE A EXTREMA DIREITA CONQUISTOU O PODER?

MARIA RITA KEHL –Todas as pessoas, não só de esquerda, mas as que prezam a dignidade do ser humano, o direito do ser humano, a diminuição da desigualdade, o respeito ao outro, todas as pessoas, mesmo que não sejam de esquerda, devem estar deprimidas com a situação e a eleição que eu prefiro não dizer o nome para não ficar divulgando muito. Para mim, o mais deprimente é que nós tivemos ditadura militar, mas as ditaduras nos foram impostas. É verdade que, no milagre brasileiro, a ditadura teve enorme aprovação, porque a questão econômica sempre passa na frente, principalmente para os mais vulneráveis, que sofrem mais com a economia. De qualquer maneira, os ditadores se impuseram a nós.

Agora, o mais deprimente é que esse cara foi eleito. A diferença foi pequena, mas aumentou no segundo turno, por uma fraude. Porque aqueles disparos mentirosos no WhattsApp, aquilo seria suficiente para cancelar. Talvez algum advogado que esteja nos ouvindo possa dizer se eu estou errada.

O que é mais chocante nessa eleição é que embora ela tenha sido uma eleição democrática, o seu resultado foi favorecido por alguns pequenos golpes do judiciário. Isso é que é assustador. Desde a prisão do Lula, que agora que não corre mais perigo nenhum eles estão pensando em revogar. Se o Brasil estivesse realmente numa cruzada anticorrupção séria, daria até para pensar: ‘De fato, o cara tinha alguma coisa com aquele sítio’. Mas o próprio Odebrecht disse que nunca teve nada. O Odebrecht, interessado em delação premiada. Ele podia dizer horrores e ele não disse. Aquele apartamento nunca foi dele. Mas ele está preso. Nós não podemos fazer nada contra isso porque o Judiciário é completamente blindado, e é bom que seja, num certo sentido, para não ser refém de pressões, ameaças. Mas não está sendo justo.

TUTAMÉIA – MAS HÁ PRESSÃO, COMO O FAMOSO TWITTER DO GENERAL.

MARIA RITA KEHL – Sim, ele sofre pressões e ameaças, mas ele é blindado no sentido que ele tem uma autonomia para decidir. Eu não estava lembrando do twitter. Agora os WhatsApps incriminando o Fernando Haddad, na véspera das eleições. Mentira. E isso ficar sem consequência? Isso não ser julgado? O Haddad tinha muita esperança. Por conta dessa fraude o Bolsonaro ganhou. Então eu acho que a depressão já vem aí. Então a gente não pode nada, porque os canais legais, os canais institucionais, que poderiam balizar esse momento, estão rendidos.

Além do mais, o que mais me preocupa é que seja um presidente de direita, que vai reduzir os benefícios sociais que tiraram o Brasil do mapa da fome. Desde a República, no mínimo, o Brasil só saiu do mapa da fome no governo Lula. E voltou. Além desse horror todo, o que mais me assusta, talvez porque eu seja psicanalista, é o efeito que está tendo sobre a sociedade. Porque uma parte está muito desencantada, muito desiludida, muito sem ver saída. E outra parte está se sentindo autorizada na sua violência, nos seus preconceitos, na sua intolerância, na sua grosseria. O laço social no Brasil, que nunca foi muito.

Nós tivemos 300 anos de escravidão, fomos o último país livre a abolir a força de trabalho escravo. Cuba foi depois, mas Cuba era uma colônia naquela época. Não só tivemos esses 300 anos de escravidão, mas quando a escravidão terminou, não houve nenhuma reparação, nenhuma mínima condição, como ocorreu nos Estados Unidos. Os escravos do Sul, depois da abolição, ganharam um pedaço de terra, um animal de tração. Aqui o fazendeiro que tinha dois mil escravos, ele bota mil e quinhentos na rua. Essas pessoas ficaram ao deus dará. Ficaram nesse desamparo, isso é vergonhoso. Nós temos uma resiliência. E também essa cultura africana, que é maravilhosa. Graças aos africanos nós temos o samba, nós temos o candomblé.

TUTAMÉIA – SOBRE AS FAKE NEWS, QUAL É A CONDIÇÃO MENTAL DE UM POVO QUE ACREDITA NELAS? COMO É QUE SE EXPLICA QUE SE ACREDITE EM MENTIRAS TÃO DESBRAGADAS, TÃO ÓBVIAS COMO AS QUE FORAM ESPALHADAS NESSE PERÍODO PRÉ-ELEITORAL?

MARIA RITA – Olha, primeiro eu lembro do Plinio Marcos, o fantástico Plínio Marcos, que durante a ditadura dizia: ‘Se é mentira, espalha logo; eles que desmintam’. A questão da mentira, de a gente acreditar ou não acreditar, está muito ligada ao nosso desejo. Se alguém disser: ‘Espalha que o Bolsonaro é pedófilo’, espalham. A gente espalha porque a gente quer esse poder das redes; ele pode derrubar governos. Desmentir é muito difícil. Eu já fui alvo, no tempo da Comissão da Verdade, de uma intriga, boba. E você sente uma coisa desse tamainho. E agora? Pessoas começaram a virar a cara para mim. Eu não sei como é que se pode coibir esse tipo de coisa. Fraude eleitoral é crime, mas se o judiciário ignora fica por isso mesmo.

TUTAMÉIA — UMA DAS COISAS QUE CHOCA NESSE PROCESSO É A LINGUAGEM QUE BOLSONARO E OS BOLSOMÍNIOS USAM. É GROTESCA, ESCATOLÓGICA, BRUTA.

MARIA RITA – É o que eu falei. O que me preocupa mais não é tanto que a política vai ser horrível, mas é o efeito que tem sobre a sociedade, esse efeito de liberar a grosseria, a indelicadeza, o desprezo pelo mais pobre. Às vezes maldades físicas, contra morador de rua. Eu não acho que precisa de uma explicação psicológica para isso. A explicação é que todos nós temos fantasias horrorosas, que somos capazes de imaginar num momento de raiva ou de indignação, atos horrorosos. A questão é que nós não nos permitimos. Quando o próprio laço social abre essa possibilidade através de uma série de discurso, isso vem à tona. 

TUTAMÉIA – O DISCURSO DO PRESIDENTE. ACABOU A HISTÓRIA DO POLITICAMENTE CORRETO, POR EXEMPLO.

MARIA RITA – É, mas eu acho que o politicamente correto é uma palavra que a gente usa meio ironicamente, porque é um jeito de, na política, a gente poder falar duro, a gente pode brigar para valer. O problema do politicamente correto é que ele virou uma expressão para designar um monte de rodeios que a gente faz para dizer, “Olha, eu não sei se eu estou enganada, eu prezo muito você, mas você é burro”. E aí faz uma pergunta malvada. Eu acho que a questão não é do politicamente correto. É daquilo que a gente chama de civilidade. A condição da democracia. Das pessoas conviverem em condições, apesar das diferenças de classe, em condições de igual dignidade. Eu acho que é isso. Eu acho que esse presidente, ele já foi eleito em cima de um desejo de desprezar isso. De poder discriminar mesmo. De poder se sentir superior. Agora, a pessoa que precisa rebaixar o outro para se sentir superior, ela está mal.

TUTAMÉIA – COMO É QUE ISSO FLORESCEU? COMO ESSE SENTIMENTO DE ÓDIO CRESCEU NA SOCIEDADE? CLARO QUE HÁ RAÍZES NA ESCRAVIDÃO, COMO VOCÊ ESTAVA FALANDO ANTES

MARIA RITA – Isso é o capitalismo também. O neoliberalismo, o capitalismo é um pouco isso. O fato de que a riqueza é produzida e concentrada em cima de exploração de mais-valia. Não sou nem economista e nem consegui ler “O Capital” inteiro, achei muito difícil.

Quando eu era bem jovem, eu e alguns amigos chamamos o Guido Mantega, que era economista, para nos ajudar a ler “O Capital”. Depois de um tempo, o grupo de dissolveu porque ficou difícil demais. Era um grupo de psicanalistas, jornalistas. Mas o primeiro capítulo, que fala do fetiche da mercadoria, eu entendi perfeitamente. Entendo perfeitamente o que é mais-valia. Que é esse tempo de trabalho roubado ao trabalhador no contrato, está embutido. Ele não sabe que ele não está sendo pago por todas as horas que ele trabalha. E esse tempo roubado é que acumula o capital.

Então, a gente tem algo de perverso nesse regime. O livre contrato de trabalho numa sociedade livre já mascara uma coisa, da qual o capitalista vai se aproveitar e o empregado não vai nem perceber –que uma parte do trabalho dele não é paga. Se não fosse isso, não teria lucro. Não teria a mais valia. Lucro pode ter na venda, mas não teria mais-valia. O Marx separa essas duas coisas. Tem algo de perverso nisso. Com isso, não quer dizer que o feudalismo era melhor, que as monarquias eram melhores, mas já tem algo de perverso aí.

Agora, isso vai se naturalizando. Isso vai sendo incorporado. Aí o que fica em jogo não é tanto se vai haver ou não exploração de mais-valia, porque nós vivemos em um país capitalista. Há algo de perverso na condição máxima que rege essa economia. Nenhum de nós, por causa disso, é perverso. Às vezes, nem o capitalista é perverso. Porque isso é um mecanismo de ocultação, que está na economia capitalista.

Nós não estávamos na sociedade dos sonhos. No entanto, nessa sociedade foi possível, depois da ditadura, ter governos excelentes, como os de Fernando Henrique e Lula. O que me parece, eu posso estar errada, é que a elite e uma grande parte da classe média –que, afinal de contas quer ser elite e adere aos valores da elite– é civicamente mal-educada, se aproveitou muito de exploração de trabalho escravo. É uma sociedade que cresceu com uma elite que se beneficiou, antes da industrialização, da exploração de trabalho escravo. Isso cria uma sociedade perversa na raiz.

Os dois presidentes que efetivamente praticaram algumas políticas que diminuíram um pouco a injustiça social foram Getúlio e Lula. Um se matou e o outro está preso. É como se o Brasil não aguentasse isso.

TUTAMÉIA — NÃO AGUENTASSE UMA DEMOCRACIA MINIMAMENTE INCLUSIVA.

MARIA RITA – Minimamente inclusiva. Eu lembro quando, no governo Lula, uma classe média baixa deu uma boa levantada e começou a viajar de avião. Às vezes até pessoas mais humildes. Eu cheguei a sentar do lado de pessoas que eu puxava conversa e que estavam voltando para ver a família no sertão pela primeira vez. Uma coisa linda. No entanto, eu ouvia nas filas, ou na hora de embarcar: ‘Esse aeroporto parece uma rodoviária’. Um certo desgosto. Como é que estou aqui e pessoas “dessas” podem pagar passagem.  São exemplos pequenos, mas eles são muito sintomáticos. Na psicanálise, na medicina também, um pequeno sintoma diz muito sobre o sujeito.

TUTAMÉIA – DIZ O QUÊ?

MARIA RITA – Sobre o sofrimento dele, sobre a neurose dele. Às vezes a pessoa vem para a análise se queixando de um pequeno sintoma. ‘Por que toda a vez que eu encontro um rapaz que me interessa eu começo a ter soluço?’ Essa coisinha. Inibição, idealização, sentimento de inferioridade, sei lá. Às vezes é uma coisa muito pequena, mas puxando pelo sintoma você vai entender muito sobre essa pessoa. Esses sintomas, o prazer de discriminar.

TUTAMÉIA — PRAZER DE DISCRIMINAR?

MARIA RITA – Esses caras que não queriam pessoas pobres no avião. Andar de avião, então, é bom não só porque é mais prático, rápido e confortável. É bom porque os outros não podem. Os outros não podem. Fiquem aí na sua rodoviária. Eu, aliás, viajei muito de ônibus, fiz o nordeste inteiro de ônibus, inteiro. A minha geração misturou um pouco uma posição de esquerda com uma posição hiponga. Essas duas coisas deram uma mistura muito boa para se viver. Não mudou o mundo, mas era muito boa para se viver. Hoje a coxinhagem está pesada.

TUTAMÉIA — EM QUE SE BASEIA ESSA COXINHAGEM?

MARIA RITA – Essa sensação de que você é superior porque você tem mais dinheiro está no umbigo do capitalismo. Como antes você era superior porque era parente de nobreza. Cada sociedade produz sua forma de desigualdade e as pessoas que conseguem estar do lado favorecido da desigualdade.

O problema é que talvez haja um mal-estar tão grande de olhar os que ficaram do lado menos favorecido. Deve ter aqueles que não estão nem aí mesmo. E que acham que o bom mesmo é que ‘eles se danem todos, eu quero o meu’. Mas também deve ter gente que começa a racionalizar, por causa desse mal-estar. Passa pala Paulista no domingo. Um monte de gente passeando, que legal. E um monte de gente, cada vez mais, pedindo dinheiro. E você vê que elas foram para a rua ontem. Não é aquela pessoa que bebia há séculos, está lá só com o cobertor, sem tomar banho há meses. São pessoas que foram para a rua ontem.

TUTAMÉIA — O GOLPE RECOLOCOU O BRASIL NO MAPA DA FOME. E O GOVERNO BOLSONARO, AO QUE PARECE, VAI APROFUNDAR ESSA MISÉRIA. AS MANCHETES SÃO TODAS NESSE SENTIDO. POUCO CRESCIMENTO ECONÔMICO, AUMENTO DO DESEMPREGO, QUEDA BRUTAL DA RENDA PER CAPITA.

MARIA RITA – Pelo clima social, vai haver também maus tratos a essas pessoas. Mas aí você estava perguntando: o que causa essa vontade de ser superior? Claro, vontade de ser superior a gente tem. Não superior no sentido de que o outro esteja embaixo. Mas de ter um valor que é só meu. Você um valor que é só seu. É bom ser reconhecido. ‘Você pinta muito bem. Você é muito inteligente. Você tem uma voz maravilhosa’. Qualquer coisa. A gente quer ter valor reconhecido pelos outros. Mas numa sociedade que é desigual, em que a riqueza foi acumulada por exploração de mais-valia, riqueza mesmo, com raras exceções, é exploração de mais-valia.

Então tem uma vontade de ignorar isso. Porque isso é duro saber. E como isso não é evidente, isso é uma operação, justamente, de alienação. Não é evidente nem para o trabalhador. Funciona no ‘eu não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe’.

Além do mais, eu fico pensando. Você está andando no seu passeio de domingo na Paulista todo feliz e se depara com esse monte de gente sofrendo. Vai amargurar um pouquinho o seu passeio de domingo. Tem vários jeitos de você lidar com isso. Você pode tentar ajudar o máximo de pessoas que você puder, com uma coisinha, comprar um saquinho de maçã. Você pode fazer isso ou você pode tentar ignorar. Ou, se te fizer muito mal, você pode fazer assim: ‘Eu quero que essas pessoas morram, que elas saiam da minha frente’. Eventualmente, como aconteceu uma ou duas vezes, alguém espancar um mendigo,

TUTAMÉIA — QUEIMAR.

MARIA RITA – Queimar. Aí já não sei explicar. A extrema maldade. Talvez seja difícil para psicanálise explicar porque eles não vão para os nossos consultórios. Eu tenho mais de 30 anos de consultório, eu nunca entrevistei. Entrevistei pessoas perversas, gostava de molestar crianças, mas estava indo para a análise, porque aquilo estava angustiando. Agora, uma pessoa que fala: ‘Eu toco fogo em mendigo mesmo’, eu nunca vi um paciente de análise assim. Nem todos os meus colegas, nem todas as pessoas que eu fiz supervisão, nem todos os congressos que eu já fui, nunca vi um paciente de análise assim. Essa pessoa está blindada.

TUTAMÉIA – Estamos falando aqui da extrema direita no poder e lembramos da “Psicologia de Massas do Fascismo”. Há alguma relação entre essa situação de hoje com esses movimentos que levaram tantas pessoas a acreditar numa solução desesperada, como foram os casos do nazismo e do fascismo?

Maria Rita – A “Psicologia de Massas do Fascismo”, que é do [Wilhelm] Reich [livro de 1933], está superado hoje. Porque o Reich se baseia muito na questão da repressão sexual. Que era o que acontecia até os anos 1960. A juventude era muito oprimida por isso. Para ele é muito forte. O Reich dava uma importância enorme para o impulso sexual, a terapia dele. Para o Freud, o sexual que interessava ele era a fantasia inconsciente. Que tem a origem sexual, mas não é que a questão se você transa bem, quantas vezes, se você tem orgasmos ou não tem. Freud não está nem um pouco preocupado com isso. No Reich, eu não acho que tem a ver com hoje. Eu acho que desatualizou. Porque se teve uma revolução que foi bem-sucedida, inclusive porque ela é boa para o capitalismo, é a revolução dos costumes.

TUTAMÉIA – ELA É BOA PARA O CAPITALISMO POR QUÊ?

MARIA RITA – Porque o sujeito liberado consome mais. Porque ele é liberado, não é só no ato sexual, que agora as meninas não precisam mais ser virgens. Agora, os homossexuais não são mais apedrejados na rua hoje em dia. Pode ser que isso volte. Durante séculos, a condição da vida social é você reprimir uma parte enorme das suas pulsões. Para você pertencer, participar da sociedade, estar de acordo com os costumes. Você reprime muito. Até o século 19, principalmente, foi o auge disso. Se a gente pensar a Idade Média, isso não conta. Era uma bagunça boa nesse aspecto. Em outros aspectos, não. Essa horrível mão da igreja sobre a sexualidade, embora a Idade Média tenha sido muito oprimida pela igreja, mas os mecanismos de controle não eram tão claros. Ela é mais do século 19 em diante, dos puritanismos do 19 em diante, quando a família fica nuclear.

A família se fecha sobre si mesma. O pai de família tem uma importância muito maior do que nas aldeias, nas famílias camponesas, ou mesmo nos palácios, em que todo munda está ali. Tem pai, mãe, filho, mas o convívio não é marcado pelo núcleo familiar.

A família nuclear precisa de várias coisas. Ela precisa de uma mulher que fique em casa. Porque, até então, as mulheres podiam ir para o campo. No feudo, levava os filhos todos, estava todo mundo junto. As crianças começavam a trabalhar cedo também por causa disso.

Mas vem o capitalismo, a urbanização e o horário de trabalho na fábrica. E o fato de, como Marx dizia, tinha criança trabalhando na fábrica, tinha mãe que o horário de trabalhar era tão grande que punha cachaça na mamadeira para a criança ficar dormindo até ela voltar. Momentos do capitalismo foi mais selvagem do que ele está hoje.

Mas, de qualquer maneira, criou uma certa exigência, pelo menos para a classe média, de que as mulheres ficassem em casa cuidando dos filhos. A vida se urbanizou, a família se nuclearizou. Não era mais aquela família extensa, que sempre tem uma tia, uma vó. E, principalmente, toda a vida social se racionalizou junto com a racionalidade do capitalismo. Então, a mulher ficou num lugar que passou a ser muito valorizado, o da rainha do lar. Precisava puxar tanto o saco dela porque era ruim, era chato.

Quando a família se torna essa que nós conhecemos hoje, que tem grandes ganhos, o amor passa a ser uma coisa importante. Amar os filhos passa a ser importante. Não é simplesmente ter filhos para depois eles trabalharem. Não quer dizer que as pessoas não amassem espontaneamente os seus filhos, mas esse valor, que hoje que está um pouco exagerado demais. Hoje as crianças ganharam um lugar assim, como se basta ser uma criança que você já é melhor que todo mundo. Sei lá o que vai dar isso. Basta ser amado pelo seu pai e pela sua mãe que você não deve nada a ninguém.

O capitalismo precisa liberar as punções sexuais. Porque elas são as mesmas do consumo. Muda a moral. Da ênfase na produção, que o protestantismo, o espírito do capitalismo nos ensinou isso, vai para uma ênfase no consumo. Hoje as pessoas podem inclusive produzir em casa, nos seus computadores. Se ganham dinheiro o importante é consumir. Isso exige que você seja mais livre. Você não pode ser um puritano e ao mesmo tempo um desenfreado consumidor. Se satisfazer é um imperativo do capitalismo.

Isso tem a ver com o aumento das depressões. Porque a pessoa que está mais ou menos triste, que está no luto, perdeu alguém, ou que está numa fase difícil da vida se sente um ‘loser’ total. Ela sofre duplamente. Ela sofre do que ela está sofrendo e ela sofre que ela quer se matar porque ela se sente uma porcaria. Tinha um paciente que falava assim: ‘Eu sempre tenho a impressão que em algum lugar tem uma festa muito melhor do que essa festinha que estou aqui. Todo mundo está curtindo, só eu que sou otário, que estou tentando me divertir nessa festinha. Eu nem tenho o endereço da outra. E se eu estou em casa então, eu sou triotário’. É isso o sentimento da juventude.

TUTAMÉIA – NAS REDES SOCIAIS TODO MUNDO OU ESTÁ NA PRAIA…

MARIA RITA – Esse paciente é anterior às redes sociais. Hoje em dia é muito pior.

Aos poucos a inflexão vai sendo no consumo. Agora tem muita mercadoria. Agora é consumo. Se isso pode ser muito bom quando, por exemplo, famílias pobres, na época do Bolsa Família, podiam comer melhor, podiam vestir seus filhos melhor, podiam ter um carrinho, ao mesmo tempo isso é pouco para manter o laço social. Era muito horrível que os ricos chamassem o Bolsa Família de bolsa esmola, era muito perverso. Porque, afinal, é uma reparação. O Brasil não deu condições iguais para todos.

Famílias que começaram com o Bolsa Família, com aquela merrequinha, saindo, pondo o nariz para fora da água para não se afogar conseguiram lançar um pequeno negócio. Tem um que, de repente, comprou duas galinhas, começou a vender ovos. O outro comprou uma cabra e começou a fazer leite de cabra. Essa ideia de que as pessoas se deitam na sopa e querem só viver daquele mínimo não é verdadeira. Só tira o pé da lama.

Eu me lembro muito bem dessa reportagem que mostra o contrário do que as pessoas pensam, que o pobre é vagabundo e, se der uma esmolinha, ele não vai mais querer trabalhar. Ao contrário. As pessoas querem dignidade. As pessoas querem também se realizar pessoalmente. Não é só a dignidade, é também sentir: ‘Estou fazendo uma coisa que eu gosto, uma coisa bacana. Em vez de ficar aqui com esse dinheirinho, eu vou fazer um bolo, vou fazer dois, se vender mais, eu abro uma doceria na cidade’. É isso. É isso que regrediu.

TUTAMÉIA — E DAÍ VEIO O GOLPE. QUAIS SÃO AS CONSEQUÊNCIAS DESSA QUEBRA DESSA NORMALIDADE INSTITUCIONAL PARA A CONSCIÊNCIA DAS PESSOAS, PARA O SENTIMENTO DAS PESSOAS, PARA O SENTIDO DA VIDA DAS PESSOAS?

MARIA RITA – Eu nem sei se eu usaria a palavra “normalidade”. Eu usaria a “justeza”. Não vou falar de justiça porque justiça parece que é só do Judiciário. A justeza das instituições. Quando as escolas estão interessadas no ensino mesmo das crianças e não na doutrinação. Quando o Judiciário é um lugar onde se procura fazer justiça e não perseguir pessoas. Quando a polícia deveria manter a ordem, a paz. E não ser mais um agente de violência.

Isso não quer dizer que essa normalidade tenha algum dia existido plenamente no Brasil, não sei se existiu plenamente em algum lugar. E não quer dizer que ela foi quebrada de uma vez. Mas teve um momento que a democracia estava cumprindo um pouco mais com os seus propósitos de proteger o cidadão, de promover a igualdade, de promover trabalho.

A quebra disso, que talvez tenha vindo em primeiro lugar, com a deposição da Dilma, porque era evidente que aquilo era falso. Era evidente que aquele circo era falso. Eu que não sou economista entendi que pedalada fiscal quer dizer rolagem da dívida. Ou seja, Fernando Henrique cansou de fazer isso e deu um jeito, até, na inflação.

TUTAMÉIA – QUAIS OS EFEITOS DA COMISSÃO DA VERDADE, DA QUAL VOCÊ PARTICIPOU?

MARIA RITA – Dilma, que foi a única presidente presa política e torturada, queria muito que o Brasil investigasse os crimes da ditadura. Todos os outros países da América Latina formaram uma comissão da verdade imediatamente depois. E mais: comissão da verdade e da justiça. A Argentina prendeu torturadores. O Uruguai prendeu torturadores. O Chile prendeu torturadores. A nossa foi só da verdade, e foi preciso de 1985 até 2012 — são 37 anos. Foi uma presidente que foi torturada conseguir votar uma comissão da verdade no Congresso.

A comissão foi muito bem recebida pelos meios de comunicação. Houve muita adesão, mas principalmente de pessoas que já estavam envolvidas com direitos humanos. Fez audiências públicas gigantescas, por todos os estados do Brasil. No entanto, já naquela época, eu senti uma… Naquela época a gente aparecia na televisão, as pessoas me reconheciam. Às vezes alguém falava: ‘Comissão da Verdade, bacana, eu vi.’. Mas, às vezes aparecia, um malandrotário dizendo: ‘Você é da Comissão da Verdade, eu vi, e o outro lado? Vocês não vão investigar?’. ” A primeira vez eu fiquei: ‘Que outro lado?’. ‘O lado dos terroristas, que mataram’ me disseram. Em primeiro lugar não eram terroristas, eram militantes contra a ditadura. Teve dois, três episódios de bomba, mas isso foi pontual e a gente não aprova. Mas, principalmente, o pior terrorismo foi o terrorismo do Estado.

Se a bomba do Rio Centro não estivesse explodido no colo do capitão, teria sido um massacre horroroso. Mas eu percebi que o Brasil ficou tanto tempo sem mencionar a ditadura. Redemocratizou e esqueceu aquele negócio, não se falou nisso. Quando a gente começou a falar, se produziu um mal-estar. Sem contar as pessoas de extrema direita, que apoiaram a ditadura. Estou pensando só no mal-estar de ouvir essas coisas todas. E, de repente, saber o que estava acontecendo aqui, debaixo do nariz. Algumas não tinha nascido, mas para outras aconteceu debaixo do nariz delas.

Eu posso dizer isso tranquilamente porque eu não sabia nada. A minha família era uma família de classe média. Meu pai melhorou de vida durante a ditadura, no milagre brasileiro. Eu não sabia nada. Quando eu entrei na USP é que os meus colegas de esquerda começaram a falar.

O Jornal Nacional só dava boas notícias. A Globo se expandiu nessa época. O Jornal nacional estava muito comprometido com o discurso do milagre. Não quer dizer que apoiasse a tortura. Mas ajudou muito fazer o laço social na ditadura, acreditar que estava tudo bem. A ilha de paz e tranquilidade que o presidente Médici disse.

Durante a Comissão da Verdade eu comecei a ouvir essa horrível teoria dos dois lados. Que as pessoas não entendem a diferença entre um crime comum e acham que um militante contra a ditadura, numa fuga ativa e mata alguém, é um criminoso e tinha que ser preso. Não é para matar ninguém. Mas um agente do Estado, que tortura e mata alguém sob a sua custódia, esse crime chama crime de lesa a humanidade. Tem uma diferença enorme de qualificação desses crimes. E não sou eu que estou dizendo isso. Então ficar ouvindo essas coisas todas, acho que muita gente começou a se incomodar e essa racionalização: ‘ Não, mas era uma guerra; não, mas tinha dois lados, não, mas alguns deles fizeram; não, mas eles eram terroristas’.

Essa racionalização veio vindo. A ponto de, pela primeira vez, naquelas passeatas de 2014, já contra a Dilma, aparecer alguém com placa “Intervenção Militar”. Poucos, mas aquilo á é um sintoma. O sintoma as vezes é uma coceirinha. Não quer dizer que o sintoma tem que vir avassalador. Uma coceirinha, não passa, dá uma feridinha, de repente, você percebe que você está com um problema de imunidade. Você está com baixa imunidade porque você começa a infecionar tudo. Isso é um sintoma. Esse sintoma de gente pedindo intervenção militar. É como se saber que isso aconteceu [a ditadura, a tortura] tivesse gerado tanto mal-estar na sociedade brasileira. E na primeira eleição livre elegem uma pessoa que foi numa audiência pública da Comissão da Verdade com a foto do Ustra, o pior dos torturadores. Ele e o Curió são os piores de todos. Acho que o Brasil adoeceu. Nesse sentido, emocionalmente, psicologicamente. Porque na ditadura as pessoas que apoiavam a ditadura, no milagre, não todas apoiavam porque apoiavam a tortura, assassinato, ocultação de corpos. Agora, na Comissão da Verdade isso veio à tona. As pessoas não podem dizer que apoiavam porque ignoravam essas coisas.

TUTAMÉIA  – AGORA ESSE SENTIMENTO DE QUE TEM QUE MATAR MESMO, QUE É CRIMINOSO. TEORICAMENTE, HÁ UMA LEGISLAÇÃO NO BRASIL, NÃO HÁ A PENA DE MORTE, E NINGUÉM SUPOSTAMENTE É CULPADO ATÉ O JULGAMENTO TER IDO ATÉ AS ÚLTIMAS INSTÂNCIAS. MAS O GOVERNADOR DO RIO DIZ QUE A POLÍCIA TEM QUE MIRAR NA CABEÇA PARA MATAR QUEM ESTIVER ARMADO. UMA BOA PARTE DAS PESSOAS APOIA ESSE TIPO DE AÇÃO DIZENDO QUE “É BANDIDO MESMO”. ISSO NÃO TORNA O ESTADO BANDIDO? O CIDADÃO BANDIDO?

MARIA RITA – Sim, essa sua pergunta já é uma resposta. Sim. Convoca a todos nós. Não é que todos nós vamos virar bandidos, mas é que convoca todos nós.

TUTAMÉIA – ISSO É UMA DOENÇA SOCIAL?

MARIA RITA – É claro que é. É muito triste.

TUTAMÉIA – TEM QUE PENSAR A CURA DISSO. ESTAMOS DOENTES, MAS TEM MUITA GENTE QUE ESTÁ PERPLEXO, HÁ ALGUMA RESISTÊNCIA. OU NÃO?

MARIA RITA – Claro que há.  Deixa eu só terminar com uma coisa que eu disse ao Lula. O Paulo Vanucchi era Ministro de Direitos Humanos e o MST me indicou para receber um prêmio de direitos humanos em Brasília. O Lula que dava o prêmio. Quando eu fui receber o prêmio eu dei um abraço nele e falei: “Muito obrigada pelos – na época 5, 6 anos – mais feliz da minha vida de cidadã”. E quando o Lula foi fazer o discurso dele falou: “Uma companheira que veio me dizer: ‘Obrigada pelos 6 anos mais felizes da minha vida’. Você veja, não foi calculado. Ele fez isso porque soou assim para ele. Esse sujeito que sabia o que ele tinha feito pelo Brasil. Sabia desde 1979 ele sabia o que ele queria fazer pelo Brasil. Ele dizia na época: “Que todo o brasileiro tome café da manhã, almoço e antar. Esse é o meu programa revolucionário”. Ele chegou perto disso. Está preso. Esse foi o crime dele.