“As pessoas [do comando das Forças Armadas] com que eu convivi, quando ministro da Defesa, eram pessoas sensatas. Eram pessoas respeitosas da lei, pessoas que se interessavam pela defesa do país –estávamos debatendo acordos militares com a China e com a Rússia. Fico muito espantado com essa visão diminuída do Brasil, do ponto de vista estratégico, de ser um quintal dos Estados Unidos, e todos esses desmandos na área governamental –na área de educação, na área ambiental, nas relações governamentais, em todos esses lugares é um desastre sem tamanho. Conheci pessoas muito sérias nas Forças Armadas. Mas vejo que elas estão muito afetadas. Acho que todas essas coisas são lamentáveis em todos os aspectos. A minha opinião é que as Forças Armadas deveriam sair.”
Essa é a avaliação do embaixador Celso Amorim, chanceler no governo Lula, ministro da Defesa no governo Dilma e com décadas de experiência na diplomacia brasileira. Em entrevista ao TUTAMÉIA, ele fala das novas perspectivas do mundo depois da derrota de Trump e da posse de Joe Biden na presidência dos Estados Unidos. Analisa o governo Bolsonaro, que considera um desastre sob todos os aspectos, e diz que “é difícil de acreditar que as Forças Armadas não estejam contaminadas”.
Lembra que há um general na Casa Civil, um general da ativa na Saúde, e a presença de milhares de militares em cargos federais, e afirma: “É lamentável para a instituição, como instituição, essa contaminação política” (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
Avalia, porém, que nem todos nas Forças Armadas estão satisfeitos com isso, ainda que não haja verbalização. Lembra, porém, as recentes declarações do general Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria do Governo de Bolsonaro, condenando declarações do presidente consideradas antidemocráticas.
Bolsonaro havia dito que “quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”. Ao que Santos Cruz retrucou, em entrevista ao UOL: “Só posso dizer que isso é covardia com a população e com as Forças Armadas, que trabalham e se dedicam às suas atividades, à defesa do Brasil e em auxílio à população em todos os momentos de necessidade, sempre dentro da lei. Isso é mais uma tentativa de enganar a população e arrastar as Forças Armadas para o centro de discussões políticas”.
Em outra fala, disse o general: “Isso aí é um devaneio completo. Falta de responsabilidade total, não tem cabimento querer envolver Forças Armadas em aventura política pessoal. Isso não é estratégia nenhuma, idiotice não é estratégia”.
Na avaliação de Celso Amorim, as declarações do presidente “denotam uma preocupação do Bolsonaro com a possibilidade do impeachment. No fundo é isso. Então, ele é preventivo, do ponto de vista dele. Não foram as Forças Armadas que disseram; quem disse foi o presidente. Claro que dessa vez elas não desmentiram…”
Mas, fora da instituição, houve reação, como a de Santos Cruz, considerada muito significativa por Amorim: “Ele não falaria o que falou se isso não tivesse o mínimo de sentimento no mesmo sentido dentro das Forças Armadas. Ninguém quer falar no vazio”.
Nada, porém, é automático: “Eu acho que isso reflete um sentimento também de incômodo das Forças Armadas. Mas, na medida em que ficam, que as coisas vão acontecendo, que as tragédias vão acontecendo, que os desastres vão acontecendo, eles estão no governo. Talvez alguns tivessem a ilusão de que poderiam tutelar o presidente. O Bolsonaro é intutelável. E fica difícil até imaginar como sair. Ficaram colados, porque obtiveram vantagens individuais e corporativas”, diz o ex-ministro da Defesa.
LÍDER FALIDO
Ao mesmo tempo, o governo Bolsonaro sofre um baque não apenas pela derrota de Trump, mas também pelo tipo de governo que Biden pretende implementar –abandonando o negacionismo que caracterizou o período Trump e marca o estilo Bolsonaro, para ficar em apenas um aspecto.
“A queda de Trump não é só a perda de um mentor ou inspirador. Isso tem um efeito na opinião pública. Grande parte das pessoas que votaram em Bolsonaro, eles acham que os Estados Unidos são um país ótimo e acham que o comunismo é uma ameaça mesmo. Então eles tinham uma referência: estava todo mundo falando mal do Bolsonaro, mas o presidente do maior e mais importante país do mundo apoia ele… É um tipo de raciocínio que tem gente que faz, então a queda de Trump também retira um apoio ideológico”, analisa Amorim.
“O Brasil fez alianças com um líder falido. A liderança do Trump faliu –não podemos ter ilusão, o trumpismo não acabou, mas essa liderança faliu. O Brasil estava pensando nos Estados Unidos. Quando, recentemente, na Organização Mundial do Comércio, Índia e África do Sul algo que facilitaria muito o acesso às vacinas por países em desenvolvimento, o Brasil se colocou contra. Foi para defender nossos interesses? Não! Foi para defender o interesse de empresas farmacêuticas norte-americanas que apoiavam o Trump. Não era nem para apoiar os Estados Unidos, era para apoiar o Trump!”
DIPLOMACIA ALUCINADA
Tudo o que Bolsonaro fez até agora, por suas palavras e ações, mais as trapalhadas do ministério das Relações Exteriores, porém, atravancam as possibilidades de relações mais positivas com o novo governo norte-americano, no entender de Celso Amorim:
“Esse mundo da diplomacia brasileira é um mundo absolutamente alucinado. É o conjunto da política brasileira, mas na diplomacia isso fica mais óbvio pelo contraste com o que sempre foi. Nunca vi nada nem de longe parecido. Vivemos um delírio. O Itamaraty de hoje, que não é o verdadeiro Itamaraty, é parte do problema. Mas, veja bem, o esteio dessa ideologia extremada, reacionária, está se desfazendo. Não que vá se desfazer, não tenho ilusões de que a extrema direita dos Estados Unidos vai acabar, mas ela está perdendo poder, o poder de fato neste momento.”
DISJUNTIVA
Por isso, as perspectivas imediatas não são alentadoras para o governo brasileiro: “Bolsonaro perde força com a chegada do governo Biden. O Brasil não está nas prioridades do governo Biden. Claro que não vai ser ignorado.”
“Bolsonaro teria uma disjuntiva. Ele vai tentar evitar, ele vai tentar conciliar. Mas eu acho que é irreconciliável, a médio prazo. Não sei se a gente resiste, o país, as pessoas… É uma disjuntiva.”
Uma opção é buscar a acomodação com Biden para agradar à elite econômico-financeira brasileira, que, no entender de Amorim, foi a tentativa feita com a carta enviada ao novo presidente norte-americano. O problema, diz o diplomata, é que “com isso, ele talvez se desgaste com a extrema direita, que é a base de sustentação mais óbvia dele… E não é só a extrema direita daqui, é a extrema direita de lá, da matriz, é o Steve Bannon”.
O outro caminho é ficar fiel à extrema direita, o que também tem contrapontos: “Aí tem de falar do comunavírus, tem de falar com partido Comunista Chinês, e vai alienar definitivamente a elite econômica, financeira e midiática brasileira. Acho que ele ainda não viu bem o que vai fazer. Começou a ver, mas acho que de maneira muito pontual. Está dando sinais de que acha que não pode ficar só na mão da extrema direita porque senão nem o centrão, que ele necessita no congresso para evitar o impeachment, ficará com ele”.
FORÇAS ARMADAS APOLÍTICAS
O chanceler também comentou com TUTAMÉIA o que se pode esperar do governo Biden e os desafios que enfrenta:
“Internamente, ele vai procurar levar adiante esse objetivo de uma sociedade mais justa e mais inclusiva. Todos os símbolos estão aí, no seu discurso de posse: citou Martin Luther King, chamou uma jovem poeta negra para fazer um recital sobre a América, não contemporizou. Agora vamos ver como as coisas se desenvolvem. Ele conta com uma coisa que, infelizmente, aqui, aparentemente nós não contamos, que são Forças Armadas apolíticas, no bom sentido, que estão ali para defender a Constituição e as instituições, e não uma ideologia.”
INTERVENCIONISMO
“Vamos ver como será a prática. Ele vai ter muitas dificuldades, mas os pontos que ele mencionou são muito positivos. No balanço, eu vejo mais coisas positivas. Agora, os Estados Unidos são os Estados Unidos da América, não vão deixar de ser. A doutrina Monroe não vai deixar de ser, mas vai ser um pouquinho mais sutil, e o uso do porrete talvez não seja tão presente.”
“Os Estados Unidos não vão desistir de intervir na América Latina. Como eles vão intervir, não sei. Como você pode influir nisso de maneira que essa intervenção seja a menos maligna possível, não sei. Mas o Brasil não vai ser um país que vai estar ali presente não. Não pode. O Brasil é tóxico. Por incrível que pareça, até para a política dos Estados Unidos na América Latina, o governo Bolsonaro é tóxico. No caso da pandemia, no caso da Venezuela, no caso mais amplo da América Latina, o Brasil é parte do problema.”
DIÁLOGO
Há esperanças de melhorias, no entender do diplomata: “Ouço muito entre progressistas de que é tudo a mesma coisa, Trump ou Biden. Não é a mesma coisa. Em política pode ter nuances, mas nuances significam às vezes centenas, milhares de vidas. O cara resolver que vai continuar reconhecendo Guaidó, e manter um diálogo do tipo backdoor, porta dos fundos, com o Maduro, através do presidente da Câmara, ou o cara invadir a Venezuela, é muito diferente. É muito diferente em termos das vidas que vão ser envolvidas”
E prossegue: “O que o Biden anunciou como programa econômicos de emergência, aquilo poderia ser copiado no Brasil: aumento de salário mínimo, pagamento de auxílio emergencial, apoio a pequenas e médias empresas. O Biden nomeou seis crises que os Estados Unidos enfrentam: o vírus, a mudança climática, a desigualdade, o racismo, a verdade e a democracia, e a posição internacional dos EUA. Tirando essa última, todas as outras eu compro integralmente. Se tivéssemos um governo aqui dizendo que está preocupado com o vírus, a mudança do clima, a crescente desigualdade, o racismo, e a verdade –contra as fake news-, eu compro integralmente”.
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