“A manifestação de Bolsonaro é muito preocupante. É uma manifestação que leva à sedição. Há um ato de constrangimento aos outros poderes e, mais do que constrangimento, um autogolpe. Os mais velhos hão de lembrar do Jânio Quadros que, quando lançou o manifesto dele [em 1961], esperava que o povo fosse sair em suporte a ele. Agora, tem esse chamamento, que está sendo bem difundido nos grupos de direita, que realmente nos lembra essa manifestação, de querer dar um autogolpe contra os outros poderes. E isso é grave. É grave que o poder executivo assuma uma posição como essa, grave para a democracia no Brasil”.

Essa é uma reflexão de MAURICE POLITI, diretor do Núcleo de Preservação da Memória, falando ao TUTAMÉIA no dia seguinte ao lançamento, pelo presidente da República, de disparos de whats app com vídeo que convoca para manifestação em defesa do governo Bolsonaro e contra o Congresso Nacional.

Desde o final da tarde da Terça-feira Gorda (25.2), quando a sociedade brasileira ficou sabendo da ação de Bolsonaro por reportagem publicada no site de “O Estado de S. Paulo”, políticos, partidos, movimentos populares, entidades sindicais e organismos de defesa de direitos humanos vêm comentando o zap presidencial.

Maurice Politi (esq.), diretor do Núcleo de Memória Política, e Rogério Sottili, diretor do Instituto Vladimir Herzog, em entrevista ao TUTAMÉIA

A cronista Eliane Brum publicou artigo como o título “O Golpe de Bolsonaro”, em que diz: “Já está acontecendo, a hora de lutar pela democracia é agora”. E alerta: “Só não vê quem não quer”.

Mesmo parecendo acreditar que ainda há margem para dúvidas quanto aos interesses de Bolsonaro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu nas redes sociais: “A ser verdade, como parece, que o próprio Pr tuitou convocando uma manifestação contra o Congresso (a democracia) estamos com uma crise institucional de consequências gravíssimas. Calar seria concordar. Melhor gritar enquanto de tem voz, mesmo no Carnaval, com poucos ouvindo.”

O ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, escreveu mensagem para a “Folha de S. Paulo” em que diz que a ação de Bolsonaro, “se confirmada”, escancara “a face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o sentido fundamental da separação de Poderes, que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce e cujo ato de inequívoca hostilidade aos demais Poderes da República traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático!!!”

No texto, ele afirma também: “O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República”.

Incidir em crime de responsabilidade, como se sabe, é abrir caminho para ser processador e dar chance a um impeachment, como lembrou ROGÉRIO SOTTILI, diretor do Instituto Vladimir Herzog, que também dava entrevista ao TUTAMÉIA na manhã desta Quarta-feira de Cinzas (clique no link no alto desta página para assistir ao vídeo completo da conversa com Politi e Sottili).

Para ele, que foi secretário nacional de Direitos Humanos no governo Dilma, “O que está posto, agora, é a resistência e a retomada do processo democrático no Brasil e a derrota de Bolsonaro, o impeachment do Bolsonaro. Está posto. Há elementos mais do que de sobre para isso. O movimento de Bolsonaro é muito arriscado para o próprio Bolsonaro, os militares estão se dividindo”.

Ele se referia ao protesto do general Santos Cruz, que chegou a integrar o governo Bolsonora e que reagiu de forma inequívoca ao uso de fotos de ministro militares nos panfletos que convocam para o ato anti-Congresso e anti-STF: “Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população”. E ainda: “O uso da imagem de generais é grotesco”. Mesmo assim, ressalva, como a lavar as mãos sobre os atos: “Manifestações dentro da lei são válidas”.

O problema é que a lei há muito deixou de ser cumprida pelo próprio governo. Aliás, desde o início e mesmo antes da posse, como ressalta Sottili: “Estamos vivendo uma situação do limite do limite. Bolsonaro se elegeu pregando o ódio, a destruição das instituições democráticas, o desmonte do Estado. Ele se elegeu sob uma base de mentiras, de fake news, mas assumia o caráter autoritário que queria implementar no governo”.

É preciso que a sociedade se manifeste e se levante contra isso: “Estamos talvez vivendo um dos momentos mais difíceis a partir da redemocratização do país. É também um momento para resistir e, talvez, aproveitar parar uma resposta à altura, especialmente a partir do Congresso, a partir do Supremo e a partir da sociedade civil, [dar] uma basta à destruição do estado de direito, como está sendo planejada”.

Há que fazer isso, afirma, mesmo havendo dúvidas quanto aos poderes do povo: “Não vamos superestimar a capacidade de resposta da sociedade brasileira, como um todo. Ela está muito tímida, ainda, mas o fato é que ela existe. E o fato é que todas essas relações –milicianos, morte de Marielle, morte de Adriano—têm colocado a família Bolsonaro em uma situação de berlinda. Eu acho que a imprensa tem se posicionado um pouco melhor, os partidos no Congresso, os presidentes da Câmara e do Senado, o Supremo. Está se fechando o cerco diante de tanta barbaridade que o Bolsonaro tem sinalizado”.

Trata-se de caminhar juntos, ressalta Politi:

“Temos de lutar agora em uma frente de resistência. Temos de resistir a esse ímpeto autoritário e a esse autogolpe. Bolsonaro está querendo se consolidar, fechar o Congresso, fechar … Uma frente é possível, mas, mais do que falar de frente política, com os partidos, que é algo mais controverso, [é preciso construir] uma frente de resistência. É o que se viu no Carnaval, os blocos que saíram às ruas, assim como as grandes escolas de samba, todos eles tinham cartazes, até o samba, que manifestavam a resistência contra esses desmandos”.

CAMINHADA DO SILÊNCIO
Resistência que também está expressa em atos, reuniões, encontros e debates organizados pela sociedade para discutir a ditadura militar, lembrar a resistência democrática e aprender com o legado de luta dos democratas do passado.

É esse o mote de manifestações que serão realizadas em São Paulo no último fim de semana de março, próximo ao aniversário do Golpe de 1964, ocorrido em primeiro de abril. As entidades dirigidas por Sottili e Politi são algumas das organizadoras dos atos, que constituem em fim de semana inteiro dedicado à memória, começando na manhã de sábado, 28 de março, e se estendendo até a tarde de domingo.

Às 10h de sábado, 28 deste mês, começa o Ato Unificado Ditadura Nunca mais, que chega à sua sétima edição no pátio do prédio que abrigou, durante a ditadura militar, o DOi-Codi, na Rua Tutoia, 921. Será um momento cultural, com apresentações musicais e de poesia, assim como depoimentos de combatentes pela democracia que passaram pelas câmaras de tortura da ditadura.

No domingo, a concentração para a segunda Caminhada do Silêncio pelas Vítimas da Violência do Estado será às 16h na praça da Paz, no parque Ibirapuera. Depois de um breve show musical, haverá uma caminhada até o monumento em memória aos lutadores pela democracia desaparecidos e assassinados durante da ditadura militar (também no parque).

Os dois atos, unidos em um só evento, são dedicados “à memória política, contra a violência do Estado, contra toda forma de autoritarismo, restrições às liberdades e pela resistência”.

É preciso lembrar, mostrar o que houve, denunciar, para que não se repitam como lembra Politi citando o dístico no Núcleo Memória: “Conhecer o passado, entender o presente, construir o futuro”.

São manifestações como essas e as tantas citadas ao longo da entrevista que animam Sottili a afirmar: “A democracia brasileira vai conseguir reagir”.