Epifania, não cheguei a ter. Mas foi uma alegria: pé no asfalto, corpo em movimento, vento ao redor, sol na cara, cheiro de qualquer coisa que não sei o que é, olhar girando daqui para lá e de volta, mais uma vez, perna para a frente, agora a outra, troca e repete, faz tudo de novo, corre.
Neste Brasil da pandemia, em que o placar de sofrimento do povo contabiliza cento e cinquenta mil, duzentos e quarenta e oito mortes pela Covid 19 neste segundo domingo de outubro, com cinco milhões, oitenta e três mil, 205 pessoas atingidas pelo vírus, pode parecer sacrilégio tentar ter alegria. Ao mesmo tempo, como já disseram outros mais sábios do que eu, viver é nossa vingança, construir encontros é nosso ato de resistência quando enfrentamos um governo que se dedica diariamente, metodicamente, a destruir o país e a minar a saúde dos brasileiros, condenando milhares à morte, milhões à miséria e ao desespero.
Depois de oito meses de quarentena, em casa, hoje pela primeira vez caminhei na rua. Mais: corri, reencontrando a arte e a cultura que meu corpo vem construindo desde o século passado, quando pela primeira vez dei uma disparada pelas areias da praia da Canasvieiras, em Santa Catarina (clique no vídeo acima para saber mais e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
Já por alguns dias o assunto toma conta de nossas conversas aqui em casa, onde quarentenamos Eleonora e eu mais nossa filha mais velha, Laura, parceira nos trabalhos do TUTAMÉIA e na Equipe TUTAMÉIA de Corridas, que já estava ficando meio enferrujada por esse descanso forçado.
No meu caso particular, beeem enferrujado, para dizer a verdade, considerando os sinais que meus joelhos ficaram mandando ao longo desses meses. Nós não ficamos parados: caminhamos por aqui mesmo quase todos os dias, fizemos exercícios de fortalecimento e alongamento não tanto como deveríamos, mas mais do que nada. E, com mais frequência do que gostaria, os joelhos velhos profetizaram um futuro sem maratonas –ainda haveremos de disputar esse vaticínio morfético.
Correr na rua, nem que fosse por um pouquinho só, nem que fosse de madrugada, nem que fosse de armadura ou escafandro, nem que fosse …
E o medo? E se a gente pega? E se eu pego e passo para minha mulher, minha filha. E se a filha pega e passa para nós? E o que vai dizer a filha caçula?, a Claudia, agora tão longe de nós, uma família cindida, dividida pela distância, como tantas nessa pandemia, em que o amor não é abraçar nem beijar, mas proteger se protegendo.
Será que a máscara funciona? Desde o início, lá em março, temos máscaras aqui em casa, usando sempre que necessário, mas quase nunca, porque não vemos ninguém nem falamos com ninguém a não ser de longe, intermediados, separados por muro, porta e portão. São feitas de pano, convencionais, coloridas, quentes –não ia dar para correr com elas.
Há mascaras para correr, ainda bem. Feitas de tecido especial, que protege, mas não esquenta tanto. Conversamos com um e com outro, um corredor, um fisioterapeuta, um médico, acabamos encontrando fornecedor. Chegaram já lá se foram uns dez dias, ficando fechadas no pacote, em cima de uma mesa fora de casa, aguardando o tempo de purga, a hora em que a gente diria: Chegou! É agora ou já, depois é mais tarde.
Esse momento aconteceu ontem. Abrimos a caixa, que se foi ao chão desmontada. As máscaras ainda estavam cada uma guardada em embalagem de plástico, com armação especial que as deixava no formato que assumiriam quando enfim lhes fosse dada a destinação exata, no rosto do atleta, cobrindo nariz e boca, abraçando as maçãs, passando um pouquinho do queixo e então se dobrando, envolvendo, protegendo.
Hoje acordamos às seis da manhã. Foi o mais cedo despertar aqui em casa desde março –a pandemia nos faz preguiçosos, logo nós, madrugadores desde sempre, fanáticos por saltar da cama às cinco e antes mesmo, para sair em jornadas pela cidade, correndo vinte quilômetros, trinta e tantos, três horas, quatro horas, e voltar suado, cansado, rosto afogueado, com fome e vontade de quero mais.
O desjejum foi uma banana e um copo grande de água de coco, apenas para acordar o corpo, avisar que os motores precisavam ser ligados. Mais conversa daqui, conversa dali, estávamos prontos.
Laura e eu vestimos camisetas de corrida bem chamativas –a minha até com faixas reflexivas, ainda que o dia já estivesse pleno de luz. Cansamos, nervosos, de esperar que os relógios com GPS encontrassem o sinal do satélite. Mais moderno, o da minha filha foi mais rápido a fazer o pareamento e dar o sinal: Concluído. Veterano de muitas maratonas, chuva, gelo e sol crestante, o meu ainda se arrastou por minutos para nós infindáveis até que finalmente apitou. Estávamos prontos.
Armada com seu celular, Eleonora registrou aqueles momentos de impaciência e a saída. Antes de abrir a porta, ainda deixamos do lado de cá os chinelos que usaríamos na volta, pois os calçados conspurcados pelo contato com o mundo externo precisariam ser deixados ali mesmo, na entrada —agora, saída–, para descanso e posterior purificação de eventuais traços de coronavírus.
Saímos a passo, Laura e eu. Caminhar fazia parte do treino, como faz parte, sempre, da minha preparação nesta minha vida sessentona.
Aquecemos descendo, vendo as casas de nossa rua, mal as vendo, na verdade, pois passavam correndo, como as paisagens vistas da janela do ônibus. Olhamos à frente, sempre, as moradias, flores, janelas, portões, carros, tudo e todos vistos de revesgueio, pelo rabo dos olhos, que, de frente, procuram o horizonte, engolir o mundo.
Com dois, três, quatro minutos, o corpo aquece, vamos nós para o primeiro bloco de corrida, a primeira corrida de verdade em oito meses quase exatos –meu último treino na rua, já em isolamento social, foi no dia 15 de março do ano da pandemia. A distância é curta, mirrada, precisa para o corpo que talvez já tenha esquecido de como é se mover desse jeito estranho, em constante desequilíbrio, empurrando o chão, avançando no espaço.
Neste recomeço, o corpo é tido como virgem, iniciante, sedentário, campeão de sofadismo. Não valiam as mais de trinta maratonas que trago no cangote, as ultras alucinantes, os cem quilômetros do Passatore nas encostas da Toscana, o se encabritar nos milhares de degraus da Muralha da China, o resistir aos ventos cortantes e às chuvas nevadas em Estrasburgo, na Islândia ou no vale do rio Yakima, o rilhar os dentes de raiva pela falta de água no asfalto incendiado do fogo matrogrossense, nada, não valiam nada. Isso foi antes, no passado, nos tempos de antanho. Agora é já, e o corpo é outro, precisa de cuidado, carinho, atenção, proteção –além de desafio, é claro.
Por isso, a jornada de hoje é assim, em blocos, aos soluços: corre um pouquinho, caminha um poucão. Para esse primeiro dia, desenhamos blocos de cem metros de corrida combinados com trezentos metros de caminhada. Corre, caminha, repete. Dez blocos, quatro quilômetros, um quarto deles corrido. Imagino assim a semana, três dias desse jeito intercalados com dias dedicados só às caminhadas.
Na rua, tudo na rua!
Mesmo tendo demorado mais do que o previsto para sair, o início às seis e quarenta ainda anos propiciou um percurso praticamente vazio de gente. Quase todos que encontramos, além do mais, usavam máscara.
A exceção, que eu me lembre, foi uma senhora que, de forma compativa ao seu comportamento social, andava com um cachorro solto, sem guia nem coleira. Tudo bem, é um labrador, não faz mal a ninguém, ela poderia dizer para defender seu comportamento irresponsável, como talvez dissesse tudo bem, nessa hora não tem ninguém na rua, tudo bem, não vou falar com ninguém, para justificar estar desmascarada. Minha senhora, eu diria nessa conversa que não aconteceu, tenho cachorros desde o século passado, e os tive de todos os gêneros e gênios e tamanho, poodle mini supermini, vira-lata, pastor e são bernardo, sempre, sempre, sempre na coleira e na guia ao sair na rua, a gente sabe como o nosso se comporta, mas nunca sabe o que pode vir pela frente, do outro lado. E vale para a máscara também: a pandemia está aí matando, sequelando, jogando gente no hospital, tirando o fôlego, assustando e levando famílias à dor e ao sofrimento aqui e por todo o canto: não ontem, mas anteontem, o mundo registrou recorde de novos casos de infecções, aumenta o número de mortes e vai aumentar mais.
Foi um momento de raiva contra ela, que só fez avivar a raiva contra esse governo irresponsável leva as pessoas a se comportarem contra si mesmas, contra os outro, contra o país, um pulso de morte escondido, edulcorado, envernizado com as cores e o brilho da autoindulgência, cheio de orgulho, bravura e honra como se grito de liberdade fosse –liberdade minha, pessoal, individual, egoísta, nojenta, covarde, contra o coletivo, o conjunto, os irmãos, a humanidade.
Melhor não permitir que essa podridão invada a corrida pura, que se faz descoberta, redescoberta para nós em ruas que tanto trilhamos no tempo em que não havia pandemia no planeta.
Ih, essa casa está agora à venda? Alguém pintou o muro, outros reforma a fachada, mais um arrebentou tudo, deixou só o esqueleto da construção antiga. São visões de través, pois nosso olhar é quase inteiro para a corrida e o caminhar, o relógio que marca os metros e comanda nosso ritmo, as ondulações do terreno.
Por caprichos do percurso, construído por nós seguindo atrás de nossos narizes, já no segundo bloco corrida enfrentamos subida, ficamos ofegantes pela primeira vez, bufamos por baixa das máscaras, sobrevivemos ao empuxe da lombinha que margeia uma praça, vista agora com sofreguidão quarentênica.
Atravessamos ruas, vemos ônibus, ouvimos à distância o ronco de raros carros na manhã que se inicia, testamos o corpo em novas inclinações do terreno –até numa escadaria! Péssima ideia!, me dizem os joelhos, que procuro acalmar com mais uma dose de caminhada regeneradora.
Melhor seguir por terrenos planos –se é que os há nesta São Paulo construída sobre morros, serrinhas, espigões, vales e platôs. E assim fazemos: às vezes, os cem metros passam mais rápido, a gente invade o tempo e o terreno da caminhada com suor e riso travesso, como criança testando os limites, sabendo que pode, é capaz, mas não deve.
Nos contemos, suamos, seguimos, terminamos, concluímos, chegamos. Primeiro treino na pandemia, jornada inaugural quarentênica da Equipe TUTAMÉIA de Corrida. Haverá mais.
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