“A prioridade política número um neste país é isolar a extrema direita. É criar um polo antibolsonaro. Se isso não for feito, o risco que a gente corre de experimentarmos um regime autoritário é muito grande. Isolar a extrema direita hoje seria reunir dois movimentos que já aconteceram na história brasileira: as diretas já de, 1984, e o impeachment de Fernando Collor, em 1992. 1984 porque existe o risco real de uma regressão autoritária. A frente ampla é para impedir que isso aconteça. 1992 porque, isolando a extrema direita como um impeachment faria, praticamente todas as forças políticas estariam presentes, como aconteceu no caso Collor”.

A avaliação é do filósofo Marcos Nobre em entrevista ao TUTAMÉIA. Ele analisa as fissuras nos apoios de Bolsonaro, enfatiza as razões de sua força midiática, disseca as posições de grupos de políticos, de empresários e de lideranças religiosas. Aponta as consequências políticas da piora dramática na situação social e econômica no país no próximo ano; trata de milícias e das divisões nas Forças Armadas e da possibilidade de fechamento.

“Eu acendo uma vela para o general Pujol todo o dia. Tem um racha dentro das Forças Armadas. E as forças democráticas não só tem com quem conversar, mas precisam conversar” (acompanhe a conversa no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Nobre considera o período 1964-1968 ilustrativo para pensar o momento atual. “É preciso pensar muito nesse período, nesse golpe dentro do golpe, em 1968. Bolsonaro tem isso na cabeça, com certeza. A eleição dele é 1964 e o segundo mandato é 68”, afirma.

Para ele, depois das eleições municipais, é necessário que se articule um “pacto para restabelecer a convivialidade, para restabelecer regras de civilidade constitucional entre as forças políticas para que elas consigam conviver. É preciso isolar este presidente como acontece em qualquer país democrático do mundo: a extrema direita tem que ser isolada, e as forças políticas fazem um pacto implícito ou explícito para isso. E para impedir que ela chegue ao poder. No Brasil, já chegou. Na Europa, na França, na Alemanha, a extrema direita demorou décadas para conseguir ter relevância eleitoral e demorou mais tempo para se se tornar palatável e manter as aparências do jogo democrático”,

Bolsonaro, observa ele, fez isso de uma tacada. “Ele organizou a extrema direita no Brasil que estava desorganizada desde o final da ditadura. Deu uma cara para ela, organicidade e ganhou a eleição. Então nós estamos muito atrasados nesse pacto para isolar a extrema direita. Temos que conseguir construir um campo que não seja eleitoral, mas que diga: nós estamos aqui em oposição a este governo enquanto uma força de oposição democrática. 2021 é a última oportunidade que a gente tem porque não tem eleição e se pode constituir essa frente ampla em que se discutam as novas regras da democracia inclusive em relação às fake news.

Professor livre docente de filosofia da Unicamp e presidente do Cebrap, Nobre declara: “Não tem nada mais ilusório do que você achar que você vai usar um sujeito de extrema direita. Se essa pessoa tiver os meios, ela vai acabar com a democracia. Todo mundo topa correr esse risco? Ouço dizer: Eu não sento com golpista. Então, você tem clareza de que não tem como defender a democracia. Porque a correlação de forças é desfavorável. Não temos alternativa. Como você vai impedir que o sujeito destrua a democracia?”, pergunta.

O filosofo lembra da atitude de Luís Carlos Prestes que, ao sair da prisão, em 1945, apoiou Getúlio Vargas, responsável pela entrega de sua companheira Olga aos nazistas. “Quem é Prestes? É uma pessoa que pensa política e sabe a correlação de forças. A correlação de forças é desfavorável para a esquerda. Estamos na defensiva. Não temos condições de fazer nada sozinhos. Vai ter na esquerda a atitude que o Prestes tomou em 45 ou não? Espero que tenha”.

E segue:

“Se você considera que a democracia está realmente em risco, pense em tomar as atitudes que correspondem à gravidade de uma situação como essa. Não é chutando a pessoa que está ao seu lado que você vai defender a democracia. Não é menosprezando potenciais aliados que podem vir para essa frente em defesa da democracia que você vai conseguir defender a democracia. Existe uma distância e um desacordo entre o sentimento que as pessoas têm que a democracia está em risco e as atitudes que estamos tomando no cotidiano”.

Na sua visão, “a esquerda tem que se organizar como frente, a direita democrática também. Depois essas duas frentes têm que sentar para ver quais serão as regras da nossa convivência política a partir de agora. Em 2016 essa direita resolveu que era uma boa ideia jogara o PT e uma boa parte da esquerda para debaixo do ônibus e atropelar para ver se salvava a si mesmo. Não dá para fazer isso de novo. É uma operação complexa, mas não sei como a democracia vai sobreviver se isso não for feito”.

A seguir, alguns pontos da entrevista.

PANDEMIA E AUTORITARISMO

A pandemia escancarou tudo que estava embaixo do tapete da sociedade e da política. Varre-se para debaixo do tapete o racismo, a desigualdade; tenta-se fazer isso. Na política, ficou escancarado o projeto autoritário de Bolsonaro. Ele tentou dar um golpe em março, abril, maio e não encontrou as condições para isso. Ele não tinha com ele a totalidade das Forças Armadas. O projeto de organizar as forças de segurança estaduais do Brasil inteiro em uma espécie de força paramilitar ainda não estava pronto.

Ficou claro o objetivo dele –e ele vai fazer tudo para alcançar esse objetivo de tornar o país num país autoritário. O que vamos fazer com o fator de termos um presidente que pretende implantar um regime autoritário? É preciso saber o quanto a sociedade e o sistema político estão convencidos de que Bolsonaro é um risco. Sinto que a elite política e a elite pensante acham o seguinte: Bolsonaro pode ser até autoritário, mas as instituições vão domá-lo, vão segurá-lo. Falaram isso de todos os líderes autoritários que apareceram até que eles destruíram as instituições que deveriam segurá-lo. Destroem por dentro. Bolsonaro tem um projeto de minar as instituições por dentro e permitir que as forças mais primitivas que existem no Brasil possam se desenvolver plenamente. Se o Bolsonaro puder, ele implanta uma ditadura no país. Eu tenho medo da eleição de 2022, porque eu tenho medo que o Bolsonaro simplesmente não saia, mesmo que ele perca.

FORÇAS ARMADAS E MILÍCIAS

Quem manda é o Bolsonaro. Ele não é tutelado por ninguém, mas ele sempre finge que é tutelado. Joga uma força contra outra. As Forças Armadas se impuseram como força de organização do governo. Ele fez um acordo com centrão, com os ‘filhotes da ditadura’, para ter uma disputa entre esses dois setores [militares e políticos de direita] e não ficar refém de ninguém. E joga um contra o outro. Eu acendo uma vela para o general [Edson] Pujol [comandante do Exército] todo o dia. É meu herói. Se eu fosse eleger uma pessoa que representa a resistência à entrada na aventura golpista das Forças Armadas eu colocaria nessa figura.

Existe uma diferença entre os militares da ativa, da reserva e os que entraram no governo. Nas forças da ativa, até agora, Bolsonaro não conseguiu convencer as Forças Armadas, como conjunto, de que é necessário fechar o regime.

Tem um racha dentro das Forças Armadas. E as forças democráticas não só têm com quem conversar, mas precisam conversar. Precisam mesmo.

“E se as forças de milícias, de paramilitares incipientes que temos hoje se organizarem e fizerem um contrapeso, inclusive às Forças Armadas? Em muitos Estados, as polícias não respondem mais aos governadores. O que o Bolsonaro tentou fazer –e a expressão disso foi o motim da polícia no Ceará– era o início de motins nacionais e a tentativa de organizar nacionalmente as policias. Aquilo era um ensaio de uma organização paramilitar nacional. Isso parou? Não sei. Vamos correr esse risco? Estava em curso quando chegou a pandemia.

FISSURAS NO GOVERNO E NA SOCIEDADE

Nós, forças democráticas, especialmente do campo de esquerda, temos que olhar as fraturas desse governo. Temos que aproveitar dessas fraturas para defender a democracia. Se você trata as Forças Armadas como um bloco homogêneo bolsonarista, você já perdeu. Da mesma forma, não se pode dizer que o centrão é homogêneo. O mesmo sobre evangélicos, policiais, empresários. O empresariado de ponta é ligado nas pautas internacionais, que hoje são duas: desigualdade e emergência climática. Essa parte do empresariado está vendo essa pauta sendo destruída cotidianamente pelo governo Bolsonaro. É muito difícil imaginar que essa parte do empresariado entra ativamente num projeto golpista. Mas tem outra parte que está contente com Bolsonaro.

DESIGUALDADE E INFERNO DE 2021

O ano que vem vai ser um inferno para as pessoas. Há 52 milhões de pessoas ou sem emprego ou trabalhando menos do que gostariam. É claro que isso vai cair no colo de Bolsonaro e é claro que uma hora vai ter uma vítima dessa doença terrível que vai ser a gota d’água para as pessoas dizerem: Nós achamos que isso é um absurdo!

E aí vai ter uma frente formada para dizer: Agora é o momento de isolar a extrema direita, e nós precisamos fazer isso, se não vamos perder a democracia. Temos que brigar por isso. Sem isso, nós não vamos combater desigualdade, racismo, machismo. Porque fora da democracia não se combate desigualdade, nem racismo, nem machismo. É a democracia que permite isso.

Sem democracia a desigualdade só vai piorar. Basta olhar para a ditadura. Em 1960, nós tínhamos um [índice de] Gini [que mede a desigualdade] que só retomamos em 2008. Foram 48 anos para voltar a desigualdade de 1960. O que tem no meio é a ditadura.