”Como se vai convencer uma população pobre de que o melhor para ela não é a distribuição de renda? Que não é um Estado forte que providencie saúde, moradia, as coisas básicas para as pessoas poderem sobreviver melhor? Como se convence? Tem que ter um discurso forte. E a fé é um discurso forte. A fé é um canal forte. O discurso religioso é fundamental para a construção de um projeto que é, na verdade, contrário ao povo, contrário aos interesses, não só da população mais pobre, mas mesmo da classe média”.
A reflexão é de Lusmarina Garcia, teóloga e pastora luterana, em entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV). Para ela, o que ocorre hoje é uma reação a um projeto de sociedade que governos de esquerda ou social democratas na América Latina e em outros países buscavam implantar. “Esse projeto que começaram a construir não foi aceito mais pelo capital, pelo sistema neoliberal que está colocado na sociedade e que regula a vida econômica do mercado”, diz.
Na sua visão, “há um projeto mundial de desconstrução dessa visão mais social que estava sendo efetivada em diversos países”. Assim, com o auxílio de religiões, políticas que tratam a população como um excedente descartável são encaradas como uma vontade divina. “Há a construção de uma alternativa política, econômica, religiosa e social que conta absolutamente com o discurso religioso para ser construída. É uma política de direita, de esgarçamento das relações, que considera parte das populações como descartáveis. É a necropolítica como política de Estado. Estamos no caminho de uma radicalização dessas políticas de morte para a maior parte da população. E é esse tipo de política que essa população de fé acaba abraçando através dos políticos e retomando vários conceitos, como o da meritocracia”. Um conceito, ela ressalta, “negador da base fundamental da teologia cristã”.
“As religiões estão contribuindo perfeitamente bem [para esse objetivo]. Elas são um braço importantíssimo para que essa política seja implementada, para que as populações sejam convencidas de que está certo, que é isso mesmo, que é a vontade de deus, que o presidente foi eleito por deus. Imagina! É só assim que dá para acreditar que essa pessoa é uma opção de deus! Só com muita distorção de valor e muita distorção teológica para acreditar nisso”.
Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, Lusmarina condena as atitudes de Bolsonaro, que classifica como “um risco para a saúde e a vida da população brasileira”. Observando o aumento das mortes pelo coronavírus especialmente nas comunidades mais pobres, ela cobra ação governamental. A alardeada ajuda, segundo ela, “não está chegando”, e os mais pobres estão sendo deixados “à deriva”.
A pastora fala das ameaças de Bolsonaro à democracia e dos movimentos em defesa do Estado de Direito. Defende o Estado laico e a critica o discurso manipulador que cita passagem bíblica sobre a verdade. Para ela, a fixação por esse trecho da Bíblia pode significar que, essa questão não é resolvida e que, “para essa pessoa, há um grande problema com a verdade”.

Ex-presidente do Conselho de Igrejas Cristãs do Estado do Rio de Janeiro, ela também comenta documento divulgado pela entidade em parceria com a Comissão Nacional Justiça e Paz, o Conselho Nacional do Laicato Brasileiros e outras organizações de caráter religioso. No texto, em que avaliam os mais recentes atos de Bolsonaro e a falta de política do governo federal para enfrentar a pandemia do coronavírus, afirmam:

As ações praticadas pelo presidente da República são tipificadas como crime de responsabilidade, crime comum, ofensa à Lei 7.170/83, entre outras. A infração penal cometida pelo presidente gera o afastamento imediato para a investigação e é julgada pelo Supremo Tribunal Federal. O crime de responsabilidade gera a possibilidade do impeachment e seu julgamento ocorre no Congresso Nacional. “

A seguir a íntegra do texto e a lista de entidades signatárias.

AFASTAR O PRESIDENTE PARA SALVAR VIDAS E A DEMOCRACIA 

Vivemos uma crise sem precedentes. Já são 195.000 mortos no mundo e 3.670 no Brasil por conta do novo coronavírus. A velocidade da pandemia está aumentando no Brasil e os cientistas, médicos e especialistas anunciam milhares de óbitos nos próximos dias. Junto com a pandemia, aprofunda-se a crise socioeconômica. Desemprego e fome – que já estavam presentes na vida de uma grande parte da população brasileira – agravam- se de forma alarmante. Os mecanismos de enfrentamento da crise ainda são insuficientes para o povo. A prioridade do governo federal tem sido os banqueiros e grandes empresários. 

Diante da mais grave crise sanitária do século, o presidente da República continua agindo irresponsavelmente e não propõe unir e liderar a nação no combate à doença. Ao contrário, prega o conflito, aposta na desinformação e nega o valor científico das medidas recomendadas pelas autoridades sanitárias e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Está em permanente contraposição às ações dos governadores e dos prefeitos, dá exemplos inconsequentes contra a quarentena e vetou parte da lei aprovada no Congresso, que garante um auxílio emergencial aos necessitados. Criou uma burocracia desumana e excluiu milhões do auxílio que está chegando atrasado. 

A irresponsabilidade se transformou em crime quando coloca em risco a vida das pessoas e quando participa e apoia manifestações que pregam o retorno a uma ditadura e do AI-5 em confronto direto com a Constituição Federal. 

No dia 19 de abril o ataque presidencial teve como destino a Constituição Federal e as instituições democráticas. Neste dia, o crime foi documentado no comício que o presidente da República participou na frente do Quartel General do Exército em Brasília, organizado para pregar o golpe e atiçar o povo contra as instituições democráticas, especialmente contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. A participação do presidente ainda motivou movimentos semelhantes em outras cidades e que também se expressaram no ódio e violência covarde contra mulheres. 

As ações praticadas pelo presidente da República são tipificadas como crime de responsabilidade, crime comum, ofensa à Lei 7.170/83, entre outras. Os fatos ocorridos agora colocam na ordem do dia a necessidade de um posicionamento claro das instituições e da sociedade civil quanto ao afastamento do presidente da República. A Constituição Federal abriga duas formas. A infração penal cometida pelo presidente gera o afastamento imediato para a investigação e é julgada pelo Supremo Tribunal Federal. O crime de responsabilidade gera a possibilidade do impeachment e seu julgamento ocorre no Congresso Nacional. 

Qualquer que seja a forma constitucional, não devemos ser omissos ante a gravidade da situação, por isso conclamamos a sociedade civil e as instituições democráticas da República a agirmos com rapidez em defesa da vida e da democracia. A demora custará mais vidas e ameaça cada dia mais a democracia. 

Brasília (DF), 24 de abril de 2020 

Comissão Brasileira Justiça e Paz Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC Comissão Brasileira de Justiça e Paz Secção do Ceará – NE 1 Comissão Justiça e Paz da CNBB Regional Norte 2 – PA e AP Comissão Regional de Justiça e Paz de Mato Grosso do Sul – CRJP-MS Comissão Justiça e Paz de São Paulo – CJP-SP Comissão Justiça e Paz de Brasília – CJP-DF Comissão Arquidiocesana Justiça e Paz de São Luís – MA Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife – PE Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán – CDVDH/CB de Açailândia – MA Comissão Diocesana Justiça e Paz de Barreiras – BA Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Londrina – PR Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz de Juiz de Fora – MG Comissão Justiça e Paz de Santarém – PA Comissão Justiça e Paz de Belém – PA Comissão Justiça e Paz de Porto Velho – RO Comissão Justiça e Paz “Margarida Alves” – Zona Leste de Porto Velho – RO Comissão Justiça e Paz “Dom Luciano Mendes” de Candeias do Jamari – RO