“A rivalidade China-EUA levou que os EUA retomassem pesadamente a política industrial e a defesa do gasto púbico em infraestrutura, a defesa e a justificativa das compras governamentais voltadas para a inovação, a defesa da ideia dos interesses nacionais, o nacionalismo efetivamente. Não o discurso idiota de nacionalismo, mas o que fazer para promover os interesses nacionais. Não é um país em desenvolvimento que está fazendo isso. É o país mais rico do mundo. É claro que esse país está fazendo isso de alguma maneira empurrado pelo sucesso dessas políticas na China. Portanto essa é uma lição”.

A avaliação é do economista Carlos Aguiar de Medeiros ao TUTAMÉIA. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorado na Universidade de Cambridge, ele diz que essa mudança dá força aos progressistas num ambiente ainda muito dominando pelas ideias neoliberais:

“Estou otimista no sentido de que a nossa capacidade argumentativa, a nossa retórica a favor do desenvolvimento, de uma democracia substantiva e da coesão social ganha fóruns crescentes de maior legitimidade vis a vis o discurso de eficiência, do mercado, do equilíbrio, dos valores individuais. Mesmo que, no nosso país, esses outros valores sejam mais fortes até um determinado momento, sobretudo quando combinados com uma coisa evangélica. Mas isso é curto prazo, esses outros elementos podem assumir uma importância”.

Para ele, “é necessário hoje um renascimento da contracultura em todos os planos. E a contracultura pode aparecer também dessa forma de olhar não só de elementos mais gerais da cultura, mas da própria política econômica no sentido da defesa de uma linha mais progressista. E junto à defesa de uma linha econômica progressista, um outro grande elemento central que a própria pandemia trouxe é a importância de você pensar a saúde como um elemento integral e articulado com o próprio processo de desenvolvimento econômico. E incluindo aí a relação do homem com a natureza”.

A análise de Medeiros culmina uma entrevista em que ele trata dos impactos da pandemia na economia internacional, da situação brasileira, das mudanças nos EUA e dos desafios da China no momento em que o seu Partido Comunista completa 100 anos (clique no vídeo, acompanhe a conversa na íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“Dificilmente eu diria para vocês que não há espaço para políticas industriais agressivas e verdadeiramente importantes ou que não há espaço para políticas macroeconômicas voltadas ao pleno emprego. Esses terrenos tornam-se cada vez mais possíveis no mundo. Esse é um elemento positivo que dá uma latitude e uma capacidade de convencimento maior, mesmo frente aos adversários dessas ideias. Existe espaço para transformação. Isso dá uma dimensão menos negativista, que é o que você poderia ter se você estivesse olhando exclusivamente para o seu umbigo, para as suas características internas. Se colocarmos um panorama de médio e longo prazo e se colocando um cenário internacional, olhar a floresta e não só as árvores que estão na sua frente, eu acho que a gente pode ser um pouco mais otimista”.

Sobre a China, Medeiros trata da estratégia política e econômica do Partido Comunista nas últimas décadas, faz comparações com a experiência da União Soviética e aborda a relação dos comunistas com o empresariado.

“A ideia é de que a economia precisa se desenvolver, e os capitais privados não podem subordinar uma estratégia de acumulação global. Essa estratégia tem que seguir. Os bens públicos –e sobretudo a infraestrutura– são um dos aspectos notáveis da industrialização chinesa. O fracasso da indiana vis a vis a chinesa é exatamente aí, na provisão de bens públicos de qualidade para a população. A Índia até cresce bem mais do que o Brasil, é bem mais desenvolvimentista que o Brasil, mas é de uma pobreza extraordinária na provisão de bens públicos. A China, não. É herança do tempo do Mao, mas que nunca caiu, mesmo no processo de abertura, de liberalização e de introdução de relações capitalistas de produção. A preocupação estratégica com a forte provisão e expansão de bens públicos e de uma infraestrutura econômica em todo o país. É uma estratégia nacional”.

Comparando a China com outros países, o economista afirma:

“A grande diferença é que a China nunca foi protetorado, não tem base militar dos EUA. Ao contrário: foi um protagonista da Guerra Fria, tem autonomia militar. Há uma questão nacional intransponível que é a soberania do estado nacional chinês, da autonomia da modernização das forças armadas. Esse é um dos aspectos mais gerais na própria subordinação dos capitais privados e da burguesia e da ideologia em geral, que é a concepção de que a China vive num contexto cuja sua ascensão é disputada do ponto de vista geopolítico e que, portanto, a unificação do povo que fala a mesma língua e a defesa dos seus interesses nacionais têm uma prioridade superior a qualquer outra. Fica mais fácil colocar essa questão e ir subordinando os interesses privados num momento em que eles colidem com interesses estratégicos fundamentais”.

Na contramão de tudo isso, o Brasil. Diz Medeiros:

“Há com comprometimento do Estado nacional. Se o Estado não provê os bens básicos, outras formas de organização, em geral criminosas, acabam gerando e provendo os bens que o Estado não provê. Um Estado que se omite na provisão de bens públicos abre espaço para a vulnerabilização e para a proliferação de outras formas deletérias e politicamente perigosas de provisão desses bens através da violência, das organizações criminosas. A expansão das milícias decorre dessa característica mais geral”.