“A verdade é que tu podes olhar de qualquer jeito, o Brasil é uma vergonha no enfrentamento à covid. Quatro de cada cinco pessoas que morreram não teriam morrido se nós estivéssemos na média mundial. Não se nós fôssemos bons. Se nós fôssemos bom, teríamos evitado muito mais mortes. O Vietnã tem cem milhões de pessoas e 15 mil óbitos. A Austrália registrou nesta semana o primeiro óbito por covid neste ano. Então é assim: o Brasil, se estivesse na média, teria evitado oitenta por cento das mortes. Se o Brasil fosse um exemplo, como já foi –no tratamento de HIV, vacinas de outras doenças–, o Brasil poderia ter evitado muito mais mortes.”

A afirmação é do doutor em epidemiologia Pedro Hallal, coordenador do Epicovid-19, maior estudo epidemiológico sobre covid 19 no Brasil. Em entrevista ao TUTAMÉIA, ele demonstra como chegou a esse número:

“Uma maneira de demonstrar isso é simples: o Brasil tem 2,7% da população mundial. Então, se o Brasil estivesse na média mundial, 2,7% das mortes por covid aconteceriam no Brasil. Mas não: 13% das mortes por covid acontecem no Brasil, desde o início da pandemia. Se dividir um número pelo outro, vai dar um, resultado em entre quatro e meio e cinco.  Há ainda outra forma de mostrar: a mortalidade por covid. No mundo, são quinhentas mortes por milhão de pessoas. No Brasil, são duas mil e quinhentas mortes por milhão de habitantes. Também é cinco vezes mais. Qualquer uma das fórmulas dá o mesmo resultado: o Brasil tem 80% de mortes que poderiam não ter acontecido.”

Respondendo a eventuais contestações do cálculo, como as feitas em seu depoimento à CPI da Pandemia, no Senado federal, o professor da Universidade Federal de Pelotas, onde foi reitor de 2017 até o ano passado, demonstra que outros fatores não interferem no resultado (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV):

“Se levar em conta outros fatores, como a estrutura etária da população, que é o mais importante, piora o cenário do Brasil. Se levar em conta o tamanho da população, o Brasil é o pior entre os dez países mais populosos do mundo. Se levar em conta o estágio de desenvolvimento, também: entre os Brics, o Brasil é o pior. Analisando fatores regionais, a história se repete: o Brasil é o segundo pior de todas as Américas –só o Peru é pior.”

Nessa mortandade, aponta o epidemiologista, “há o dedo do governo federal e há a digital do presidente da República. Está lá digital dele nas mortes. A avaliação de punições criminais ou administrativas não compete a mim; compete a mim a avaliação científica dos dados. Agora, que há um excesso de mortes no Brasil e que essas mortes têm a digital direta do presidente e outra do governo brasileiro, ah, tem! E é uma digital bem forte. Não é uma digital que está meio apagadinha não. As provas do crime estão todas à disposição. Basta querer olhar. Está tudo lá, documentado, basta analisar com imparcialidade”.

Tudo isso é resultado do comportamento adotado pelo governo federal desde o início da pandemia, afirma Hallal:

“No momento em que o Brasil negou a realização das medidas que a ciência sugeriria, o Brasil aceitou ter esse número elevado de mortes. É indiscutível que a estratégia brasileira foi apostar na imunidade de rebanho, que desde o começo os pesquisadores disseram que, para essa doença, era uma bobagem, mas o mundo negacionista, o mundo da ciência de whats app tinha certeza de que nós atingiríamos a imunidade de rebanho. Não atingimos, um monte de brasileiro morreu, e nenhum brasileiro veio a público, como fizeram os suecos e os ingleses, dizer: ‘Errei. Vamos mudar o rumo.’. Não. Enquanto um mês e meio depois do início da pandemia todos os lugares do mundo já tinham notado que essa estratégia da imunidade de rebanho era equivocada, o Brasil até hoje ainda fala em imunidade de rebanho. Muitos dos equívocos foram cometidos diretamente pelo presidente da República. Mesmo na instabilidade que nós estamos, nos equívocos grosseiros que esse governo comete, se o presidente fosse outro, a situação estaria menos ruim, porque o presidente, isoladamente, tem uma responsabilidade grande por essa conduta vexatória do Brasil no enfrentamento da pandemia.”

Apesar de tudo isso, Hallal diz que já é possível enxergar a possibilidade de melhoras, ainda que bem depois de outros países:

“A situação hoje é um pouco melhor do que foi um tempo atrás. Nos primeiros meses do ano, nós tivemos uma tendência de crescimento grande, marcante. Depois, tivemos um ou dois meses de estabilidade, e agora a gente começa a ter uma tendência de queda. Se essa tendência de queda vai se manter, depende do que será feito. Num aspecto o Brasil tem evoluído: está vacinando mais. Tem conseguido fazer mais de um milhão de doses praticamente todos os dias, nas últimas duas semanas. Isso faz com que a gente comece a ver uma luz no fim do túnel. Essa luz já passou nos Estados Unidos, em Israel já passou; em outros lugares do mundo vai ser em agosto, setembro. No Brasil, não; no Brasil vai ser dezembro, janeiro, talvez novembro, talvez fevereiro, na margem de erro, mas eu diria que bem perto ali da virada do ano. E essa demora para que a gente chegue ao patamar de outros países é exatamente pelos mesmos motivos que nos fizeram chegar tão mal até aqui: o Brasil lida mal com a pandemia, seja pelos péssimos exemplos dados pelo presidente da República, seja por outras questões, como o fato de que o Brasil testou muito pouco, o Brasil não fez rastreamento de contatos.”

Tal perspectiva não deveria autorizar um descuido das precauções:

“Agora está caindo de maduro que a gente faça um lock down rigoroso por três semanas, bote esses números no chão, e aí reabra. Mas a minha esperança de que isso aconteça é praticamente nula. Não há boa vontade por parte daqueles que deveriam implementar essa medida. Ao contrário: o Brasil é o único país do mundo em que os empresários, alguns empresários são tão ideológicos que disseminam uma ideia que é ruim para o próprio negócio deles. Ninguém tem dúvida de que, se o Brasil tivesse adotado períodos curtos e rígidos de lock down, espaçadamente ao longo da pandemia, a economia estaria muito melhor. O Brasil é o único país do mundo que tem empresários que defendem algo que os prejudica financeiramente. As pessoas defendem o indefensável com a maior naturalidade.”