“Na capoeira, quando o corpo recua ele não está fugindo da luta. Ele recua, potencializa e, quando volta, pode pegar o outro de surpresa. Recuo não significa desistência. Significa preparar o terreno, pisar no chão devagarinho. É fingir de morto para enganar o coveiro”.
Com essa metáfora, a escritora Conceição Evaristo resume sua posição sobre o que devem fazer os movimentos negros em tempos de extrema direita no poder. “A gente está sempre pisando sobre ovos. O racismo impera na sociedade”, afirma em entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo acima). Mineira, ela diz que é hora de “assuntar em volta, comer pelas beiradas”.
Hoje, continua, “a gente recebe um balde de água fria. Mas os avanços que tivemos, mesmo em terreno movediço, não têm volta”.
Conceição fala de cotas, do aumento de professores e alunos negros. “Essas pessoas estão antenadas. Uma vez tendo conquistado esse espaço e sendo pessoas comprometidas com a coletividade negra, elas começam a revolucionar dentro dos seus espaços de trabalho e de estudo”. Por isso, argumenta, a ascensão dos negros na sociedade vai continuar.
Poetisa, romancista, ensaísta, Conceição Evaristo recebeu o Prêmio Jabuti de 2015. É autora, entre outros, de “Ponciá Venâncio” (2003), Becos da Memória (2006), “Olhos D’Água” (2014) –este último acaba de receber tradução para o francês.


Conceição Evaristo conta a sua história ao TUTAMÉIA: “Não nasci rodeada de livro, mas rodeada de palavras. Daí meu encantamento com a palavra. Minha mãe fazia oficina da palavra conosco. Sentava com as quatro filhas; era um jogo”.
Os poucos livros  vinham de sobras da casa da patroa da mãe, conta. Depois, já no grupo escolar, ela aprendeu a gostar de ler. “Li muita poesia na infância”, recorda.
Quando sua tia foi trabalhar como servente na biblioteca pública de Belo Horizonte, na Praça da Liberdade, uma outra perspectiva se abriu para Conceição: “Eu pegava o livro e ficava sentada da praça lendo”.
Naquele momento, “ser escritora era um desejo nunca vivenciado pelas meninas da favela. Era distante. Nunca pensei. Queria ser professora”.
Conceição lembra das leituras que a marcaram: Alaíde Lisboa de Oliveira, Olavo Bilac, Guy de Maupassant, Anne Frank, Carolina Maria de Jesus, Jorge Amado, Carlos Heitor Cony, Josué Montello, Lima Barreto, Machado de Assis. “Lia sem pensar Machado como escritor negro. Não tinha televisão em casa, não tinha possibilidade de cinema e teatro, eu lia muito”.


“Neguinho da favela, cabelo Bombril, pretinha, macaco. Descubro o racismo na escola primária”, conta. Na Belo Horizonte dos anos 1950 (ela nasceu em 29 de novembro de 1946), era evidente que as melhores escolas não estavam na favela onde nasceu. Mas, a mãe, preocupada, a levou ela para estudar num colégio mais longe, melhor. Dentro da escola, ela viveu num “apartheid geográfico”. Os melhores alunos, na maioria brancos, ficavam no andar de cima do colégio; no andar de baixo, ficavam os negros que vinham da favela. Ser transferido para o andar cima era “objeto do desejo”, rememora.
O episódio a marcou. “O meu diploma de jardim de infância é de uma crueldade muito grande. Vinha desenhado com crianças brincando. São figuras muito bem tratadas. Mas a criança negra no balanço é uma caricatura, um desenho mal cuidado, a criança está apavorada. As expressões das outras crianças, brancas, são suaves, em paz com o ambiente. Foi preciso eu pegar depois de grande e analisar”.
Conceição lembra também de como sua irmã, mais jovem, era desprezada na escola, enquanto uma estrangeira loira era bem tratada pelos professores. “Havia um tratamento diferenciado; era extremamente racista. A vida me permitiu ter esse entendimento”.
Anos depois, ela conhece o movimento negro, a juventude operária católica, a luta pelos direitos civis nos EUA, Ângela Davis. Luta pela libertação de Mandela e passa a admirar o exemplo de Cuba.
Nessa trajetória, descontrói o mito da democracia racial brasileira. “Como diz Ângela Davis, a liberdade é uma luta constante. Tudo que eu escrevo é marcado pela minha condição de mulher negra na sociedade”.