“Meu pai, Aziz Ab’Sáber, estudava a presença de traços, de elementos do passado na geografia do presente. Ele os chamava de relictos, que permitiam reconstituir mapas do ambiente do Brasil, do clima há 11 mil anos, 12 mil anos. A Amazônia, por exemplo, era mais seca naquela época e já tinha índios aqui. Com traços do passado, linhas de pedras, marcas do mar conseguiu desenhar, pensou esse tipo de arqueologia da geografia. É um relicto do passado, uma marca que é do passado, que está aqui na geografia do presente e que conta a história do passado; é um elemento arqueológico. O Bolsonaro é um elemento arqueológico. Ele é o desprezo brasileiro, português e servil de toda a estrutura do poder por todo o contrato democrático. Bolsonaro é um inimigo orgânico da democracia. É um arcaico brasileiro”.
Assim, lembrando das pesquisas do renomado geógrafo, o psicanalista Tales Ab’Sáber define o capitão em entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo acima). Segundo ele, o processo atual revela a tradição autoritária brasileira, fundada na escravidão. “O país emergiu da recusa dos direitos civis. Para muitos brasileiros, o povo brasileiro ainda não tem direitos. O que tristemente chegou no governo é uma parte do Brasil que pensa assim. É uma voz que tinha sido recalcada pelo processo democrático, a voz do autoritarismo ligado à ditadura militar”, afirma.
Tales observa que o mundo já tem uma ideia terrível sobre o capitão. “Tem alguma coisa no Bolsonaro que é inaceitável. O Brasil entrou num beco sem saída de política global. A elite brasileira apostou num vale-tudo que não existe. Só no Brasil existe esse vale-tudo. Fica difícil para a elite brasileira justificar esse vale-tudo no mundo”.
ELITE DESPREZA O POVO
Essa elite, de acordo com o psicanalista, tem uma posição perversa e dupla. “Eles estão constrangidos com isso, sabem que isso não é aceitável; eles são cobrados por isso. Fizeram um pacto com extrato altamente autoritário no Brasil. Esses caras estão andando junto com criminosos, milicianos, os que fazem ataques a fundamentos da democracia. Estão revelando seu caráter antidemocrático, de desprezo pela vida popular”, diz.
Tales comenta recente declarações do presidente do Itaú, que releva as posições de Bolsonaro em razão das reformas neoliberais e alega vantagens de uma alta taxa de desemprego. “É um escândalo. É uma alternativa baixa, primitiva de produção de capital. O Brasil cresceu dez anos sem inflação, gerando emprego e dando ganho aos bancos. É uma barbárie [o que defende o banqueiro]. O que eles estão fazendo hoje é uma moratória da Constituição. A Constituição está suspensa. A elite brasileira tem a fantasia de se qualificar em cima do desprezo pelo povo brasileiro”.
VITÓRIA BASEADA EM FALSIFICAÇÕES
Na análise de Tales, em 2015 houve uma “unificação total de setores do capital brasileiro contra Dilma”: agronegócio, bancos, indústria, mídia e igrejas evangélicas –“que também são setores do capital”. A direita, assim, conseguiu estabelecer um “um golpe psicopolítico, onde vale tudo contra o PT, inclusive o flerte com o fascismo. A vitória política foi baseada em falsificações, ilegalidades”.
“O processo que levou à prisão de Lula teve um caráter perverso. Houve conluios ilegais entre o juiz e o Ministério Público. Um processo de exceção foi construído para o Lula”, afirma.
PROTETORADO DOS EUA
Além do acordo das burguesias. O psicanalista avalia que “havia interesses americanos operando por trás. A grande questão dos EUA era não permitir que a indústria e a tecnologia da construção civil poderosa brasileira se articulasse à riqueza do petróleo da Venezuela e gerasse uma política para a América Latina. Isso geraria uma potência civilizatória e econômica que não era interessante para os EUA. O que caiu na Lava Jato foi a indústria da construção. São interesses objetivos americanos, a guerra híbrida existe. Mas nós somos sujeitos da nossa degradação”.
Tales condena o “adesismo banal e ridículo do presidente do Brasil aos EUA. É um servilismo sistemático do governo aos EUA”. Segundo ele, o que está em curso é um “projeto alucinado de reduzir o Brasil a um protetorado americano, uma entrega do Brasil à gestão americana”.
FASCISMO E VIOLÊNCIA
Bolsonaro é louco? “Não é louco. É louco no sentido de ser alguém que é profundamente comprometido com a não regra do jogo. Faz um ataque à democracia, ao iluminismo, ao que há de civilização na modernidade. Faz uma ruptura radical com qualquer acordo simbólico. Isso só pode se dar por violência. O fascismo é a conversão da política em violência. Existe um convite que vai ligar o miliciano, o policial racista, os ressentidos do país que não têm destino na sociedade. Há uma revolta da violência conservadora dentro da ordem”.
AVANÇO EVANGÉLICO SOBRE A PSICANÁLISE
Na entrevista, o psicanalista trata das razões da expansão evangélica no país. E aborda as tentativas de grupos religiosos de regulamentar a psicanálise.
“Os evangélicos se aproximaram da psicanálise; fizeram uma grande fantasia de que a psicanálise era uma espécie de protestantismo. Nos últimos 20 anos, eles têm forçado uma regulamentação da psicanálise pelo Estado. Não queremos isso”.
O psicanalista relata a construção de uma gente das diversas linhas de trabalho da ciência contra essas intenções. “Você não precisa regulamentar a física. Na verdade, o que existe é um ataque político de um grupo político que quer configurar um território e tirar vantagens políticas e econômicas desse território. Isso é inaceitável. Todo o movimento psicanalítico está unificado em torno disso. Eles forçam deputados para fazer a regulamentação. A regulamentação não corresponde à natureza livre da experiência do inconsciente”.
CAPITALISMO CONVOCA NEOFASCISTAS
Tales examina essa hecatombe brasileira no contexto da crise capitalista que eclodiu em 2008 e que trouxe à cena os neofascistas. “O capitalismo está convocando os neofascistas para a proteção do capital. Está dizendo: ‘Nós não pagamos mais os preços dos contratos sociais acordados. Não pagamos mais os preços pela constituição de 1988. É uma desresponsabilização radical, chocante. Para eles, o povo não tem legitimidade na construção do país. A elite brasileira tem poder, diretos sobre a vida das pessoas. É um império do século 19 no século 21”.
DESPERTAR DO ENCANTAMENTO
Saídas para a resistência? “As pessoas têm que despertar desse encantamento. Isso foi um sortilégio ideológico, uma feitiçaria ideológica que foi construída ao longo de quatro anos. Desde o processo de impeachment, que reanimou um anticomunismo farsesco, falso e mentiroso. Essa alucinação já começou a refluir. Agora se percebe o custo alto para o pais, de desmoralização internacional, o custo econômico. O mundo tem que controlar a catástrofe política brasileira, se não a gente acaba com a sociedade civil no Brasil. Bolsonaro não é solução; é uma crise permanente”.
Lembrando de Glauber Rocha, fala Tales: “O Brasil está num neotranse. Estamos num ciclo de transe. Há um impasse da crise reprodução do capital global que rompeu o trato com os processos de constituição de democracias do pós-guerra do século 20. Tem um transe global. É preciso um Pacto de Moncloa global, como aconteceu no pós-guerra”.
Quero agradecer enormemente ao Tutameia por me proporcionar essa excelente e valiosa aula nesta entrevista c/ o Tales Ab’Sáber . Fiquei enormemente fascinado com a aula que tive nesta tarde de 4ª feira . Muito obrigado ao casal amigo ! Obrigado Tales , vc sabe muito . Francisco .