“O aborto, no Brasil, tem um recorte de classe social e de raça. São as mulheres pobres e as mulheres negras que são punidas pela criminalização. Todos os dados mostram que são essas mulheres que sofrem o impacto da interdição da interrupção da gravidez, mesmo nos casos permitidos em lei, porque elas acabam não conseguindo ter acesso. Ainda são poucos locais que oferecem o serviço no Brasil, mesmo o permitido por lei. Se querem diminuir o número de abortos, é preciso legalizá-lo.”

É o que afirma a psicóloga Rosângela Talib, uma das dirigentes do Católicas pelo Direito de Decidir, organização feminista que há quase duas décadas trabalha em defesa dos direitos sexuais e direitos reprodutivos e que na última terça-feira (3.11) entrou com recurso contra decisão judicial que lhe proíbe o uso da palavra “católicas” no nome. Em entrevista ao TUTAMÉIA, ela comenta os ataques sofridos e denuncia os grupos que tratam as mulheres como cidadãs de segunda classe.

A decisão judicial, no entender do advogado Luís Francisco de Carvalho Filho, “é um componente espantoso da distopia errante, obscurantista e mulambenta que o governo Bolsonaro fez emergir”, conforme escreveu em artigo na “Folha de S. Paulo”.

Para Talib, o que está em jogo “não é só o direito de usar o nome, católicas. É o direito da livre expressão, que é uma garantia constitucional, e também é o direito da livre associação, enquanto católicas. A gente não acha que é possível que a Justiça que decida questões de fé; afinal de contas, o estado é laico”, disse ela na entrevista, em que também tratou de questões como a violência contra as mulheres (confira a íntegra no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Ela lembra que o grupo já foi aceito como parte até em processo julgados no Supremo tribunal Federal e explica: “Nós não falamos em nome da igreja. Nós somos um grupo de mulheres católicas, que diverge da Igreja na questão do ensinamento em relação à sexualidade e à reprodução, e incitamos a igreja a discutir esses tópicos. Como todos sabemos, a igreja católica não é uníssona, não tem só um modo de ver as questões. Existem várias formas de crer e de professar a fé, e é saudável, dentro das instituições, ter fiéis que discutam o que está sendo colocado”.

O grupo, conta a psicóloga, entende que seu posicionamento tem base na fé católica: “A questão do início da vida é uma questão que nem a ciência nem a teologia deram conta. O que a gente defende está baseado no magistério da igreja,  de que o aborto é uma questão moral e ética, uma decisão moral bastante difícil que as mulheres muitas vezes têm de tomar. Está no magistério da igreja: nesse caso é a fiel e sua consciência, é ela e Deus, só Deus pode julgá-la. E a gente usa esse argumento para dizer às mulheres que é possível, sim, decidir por um aborto, e não se sentir culpada por esse ato. Quem pode julgá-la é só Deus. Não há nenhum ente civil na Terra, nem o Papa, que pode fazer esse julgamento. É o canto mais recôndito da fé católica, de você poder se comunicar diretamente com Deus. E se, realmente, for pecado, o julgamento é no Juízo Final, não agora”.

Agora, afirma Rosângela Talib, é preciso atender e proteger as mulheres e as meninas, não as condenar: “Não é possível que a gente no Brasil, neste momento, em pleno século 21, ainda esteja brigando para ter educação sexual nas escolas. Se se quer prevenir a gravidez na adolescência, não é com programa de abstinência sexual, é com educação sexual. Os jovens devem saber como se prevenir de uma gravidez indesejada. Não adianta dizer que a abstinência é a melhor coisa, porque a gente sabe que, dali a pouco, vai aparecer uma menina grávida. O acesso à informação, acesso a métodos contraceptivos é essencial para que se reduza o número de abortamentos.”

Trata-se de uma questão de saúde pública: “Há índices alarmantes de gravidez na adolescência, e a gente sabe o impacto que isso tem na vida das meninas. Provoca evasão escolar, o que depois leva a subemprego, a gente sabe o impacto na vida pessoal e social que é uma gravidez na adolescência”.

Por isso, considera que a mulher que decide realizar o aborto está tomando uma atitude muito responsável:

“A questão do direito ao nosso corpo é crucial. Não nos reconhecem. Não reconhecem nosso direito de decidir. Eu costumo dizer que uma mulher que decide fazer a interrupção de uma gravidez, ela está sendo extremamente responsável. Responsável porque ela sabe o que significa. A maioria das mulheres que abortam neste país são mulheres que já tiveram filhos, mostram as pesquisas. Ela sabe o significado da criação de um filho. Não são nove meses, como dizem os contrários ao aborto, afirmando que, se a mulher não quer, deve gestar e depois entregar para a adoção, como se a gente fosse meras chocadeiras. Meras chocadeiras! As mulheres são extremamente responsáveis, porque sabem o significado de colocar uma pessoa no mundo. Não são nove meses, é tornar um sujeito um cidadão, educar, formar, e não é só o custo financeiro. É a responsabilidade de você colocar outro sujeito no mundo. A maternidade é para a vida inteira.”

E segue:
“Essa autonomia que a gente defende, para eles é um entrave insuperável. Não nos veem como sujeitos de direito. É como se fôssemos cidadãs de segunda classe. Temos alguns direitos, outros nãos. Nada justifica exigir de uma mulher que coloque em risco a sua vida, que coloque em risco a sua saúde –como fizeram com aquela menina. A mulher tem história. A vida das mulheres importa. Nada justifica a perda da vida de uma mulher por um aborto inseguro. A ciência avançou muito, o aborto pode ser feito de forma medicamentosa, em casa. As mulheres devem ter o direito de decidir o que é melhor para elas. Nada justifica obrigar a mulher a manter uma gravidez, principalmente se ela for fruto de uma violência sexual. Não somos meros receptáculos de outros seres humanos. Gestar significa criar vínculos emocionais e afetivos, não só biológicos. Por isso que eu digo que nós não somos meras parideiras. Não nos tratem desse jeito, nos respeitem!”