Em primeiro de abril de 1964, João Lopes Salgado viu o fogo tomando conta da sede da UNE no Flamengo. O incêndio criminoso era obra do Comando de Caça aos Comunistas.
Atônito, saltou do ônibus. Sentiu uma dor na alma, conta ele, que voltava do trabalho na Fábrica da Aeronáutica do Galeão, onde eram produzidos aviões de treinamento para os cadetes. Sargento da Aeronáutica, Salgado era eletricista de aeronave e se preparava para entrar na faculdade de medicina.
“No dia seguinte, o ambiente na fábrica tinha mudado completamente. Alguns dos funcionários da seção que eu coordenava já estavam presos, outros saíram. Nossa unidade virou uma prisão para os operários da própria fábrica, os mais ativos na militância. Dias depois, a nossa unidade virou uma prisão para os sargentos e praças. Fizeram várias celas. Nós, os militares, ficamos aquartelados e ficamos sendo carcereiros de nossos colegas e amigos”, recorda Salgado ao TUTAMÉIA.
Nascido em Abre Campo (MG) em 1941, filho de pequenos camponeses, ele lembra da infância cheia de privações para aquela família com dez crianças. “Não se passava fome. Mas sal era um negócio difícil. Macarrão só entrava no dia do Natal”.
No Rio de Janeiro, passou a ser um admirador das propostas de João Goulart. “Eu era um nacionalista. O militar daquela época, mesmo os menos conscientes, tinham um ideal do nacionalismo”, afirma.
No papel de carcereiro, na fábrica da Aeronáutica transformada em prisão, Salgado “abriu a cabeça”, como diz: “Os presos me falavam que havia possibilidade de acabar com as diferenças sociais, me falaram da revolução russa. Esses meses de guarda carcerária foram muito importantes”.
No ano seguinte, ainda nas Forças Armadas, entrou na Faculdade de Ciências Médicas do Estado da Guanabara. “Passei a ter consciência a partir da faculdade, que era intensamente mobilizada”.
Lá liderou vigorosos protestos estudantis e, em seguida, entrou para a luta armada. Participou do sequestro do embaixador norte-americano em setembro de 1969 e, em 1971, atuou com Carlos Lamarca no interior da Bahia.
Nesta entrevista, gravada em 26 de fevereiro de 2024, Salgado rememora sua trajetória e declara:
“Defendo a luta armada sem nenhum preconceito. Ela tem que ser colocada na conjuntura correta. Naquele momento, com a consciência que eu tinha e com as restrições que a gente tinha –não tinha mais sindicato, diretório acadêmico; era só prisão, era só tortura. Eu, jovem, acreditando que tinha outros caminhos para poder mudar aquela situação, o que eu tinha que fazer era me engajar. Fui para o grupo de fogo. Fizemos as primeiras ações de expropriação de armas, levantamento, propaganda armada em porta de fábrica”.
“Naquele momento, eu não tinha nenhuma dúvida –e não tenho até hoje. Não acredito em revolução pacífica. Pode ser uma etapa da revolução. Mas, naquele momento, o que se apresentava era um engajamento revolucionário de resistência armada, e eu entrei com muita convicção nessa jornada”.
Antes dessa adesão, ainda nas lutas estudantis, já havia enfrentado o tiroteio da repressão. Foi dia da queda do Congresso da UNE em Ibiúna, 12 de outubro de 1968.
“Fizemos uma grande mobilização em apoio ao congresso, contra a prisão dos estudantes. De manhã, passamos três filmes no nosso cineclube. Depois, fechamos a avenida 28 de Setembro, em frente ao hospital universitário Pedro Ernesto. Era a avenida mais movimentada da vila Isabel”.
“Apareceram três ou quatro camburões do DOPS soltando bomba. Os estudantes foram para cima dos policiais, que estavam armados. Chegaram outros camburões. Chegaram atirando e feriram uns sete ou oito estudantes. Um levou um tiro na cabeça: Luiz Paulo Cruz Nunes, do segundo ano de medicina, morreu”.
A situação mudou totalmente. A região foi cercada. Vieram o reitor e o comandante da Polícia Militar para encontrar com Salgado.
“Fui muito emocionado, chorando, eu me sentia meio culpado. Adentra o comandante da Polícia Militar e o reitor João Lira Filho, irmão do Lira Tavares. O comandante estende a mão e diz que está em missão de paz. Num impulso, respondi: ‘Eu não aperto mão de opressor do povo’. O coronel ficou branco, amarelo, não sabia o que fazer. Os estudantes em volta aplaudiram. Ele baixou a mão, mas a vontade dele era me dar uns pescoções”.
Sobre o convívio com Lamarca, fala Salgado:
“Era uma pessoa muito comprometida, aquela pessoa que faz o que fala. Um homem muito sensível. A ditadura fez tudo para poder macular a imagem de uma pessoa íntegra, sensível, de bom coração. Que faz as coisas porque acredita nas coisas que faz. E faz sempre do lado bom. Capaz de reconhecer os erros. Uma pessoa doce, sensível e íntegra”.
O depoimento integra uma série de entrevistas sobre o golpe militar de 1964, que completa sessenta anos.
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