“O que os EUA precisam aprender é que o Brasil não é serviçal deles. O Brasil é um país soberano, que define a sua política externa e, da mesma forma que o Brasil respeita a política externa dos EUA, nós queremos que ele respeite a política externa do Brasil. Só isso. Nós não somos quintal de ninguém. Vale para os EUA, para a China, para Rússia, para a Índia e vale para a Guiné Bissau. Respeito é bom, a gente gosta de dar e a gente gosta de receber. É isso que eu posso falar para os EUA. A gente não vai aceitar, como eu não aceitei, interferência”.
Palavras de Luiz Inácio Lula da Silva em resposta à pergunta do TUTAMÉIA, sobre a ação norte-americana na política nacional, durante entrevista coletiva com sites independentes na manhã de 19 de janeiro de 2022. Durante mais de duas horas, Lula tratou de projeto de desenvolvimento, do papel essencial do Estado, de militares. “Eu não posso balizar as Forças Armadas pelos que estão no governo; essa gente não representa as Forças Armadas”, assinalou.
O ex-presidente falou sobre as alianças políticas, os empresários, o desemprego, a queda da massa salarial, o aumento da fome. Disse que a situação atual do Brasil é muito pior do que a que ele encontrou em 2003, quando tomou posse pela primeira vez na Presidência da República. Defendeu um amplo debate na sociedade sobre os rumos do país e declarou que a vitória, de fato, virá quando as instituições forem aprimoradas –hoje elas “são compostas pela plutocracia”.
Lula se emocionou, segurando o choro, ao lembrar do período de miséria que viveu na juventude e falou de mudanças profundas:
“Você acha que alguém tem aspiração de dormir num quartinho de 2 por 2, onde ali se cozinha, se faz as necessidades fisiológicas, se faz sexo, com 10, 12 pessoas no mesmo quarto? Eu morei num quarto e cozinha com 13 pessoas. Então, eu tenho consciência do que esse povo está passando [fala com os olhos marejados e a voz embargada]. Eu não posso mentir. Eu não posso ganhar, aos 76 anos, e dizer: ‘Eu ganhei, mas eu não posso fazer as coisas. Desculpa, eu tenho que atender ao mercado. Eu preciso atender à Faria Lima. Eu preciso ter responsabilidade fiscal. Eu preciso manter teto de gasto’. E o teto de comida? E o teto de emprego? E o teto de salário? E o teto de saúde? Quem vai devolver para esse povo? É esse cidadão, que acaba de ficar emocionado, que quer ser presidente. E, se for, é para mudar. Não é para continuar a mesmice”.
Em outro momento, ele enfatizou:
“Não posso ser presidente da República para resolver o problema do sistema financeiro, para resolver o problema dos empresários, para resolver o problema daqueles que ficaram mais ricos na pandemia. Só tem uma razão de eu ser candidato a presidente da República: é para tentar provar que esse povo pode voltar a ser feliz, que pode voltar a sonhar com uma escola técnica, com universidade, em viajar, em passear, em ter acesso às coisas interessantes, com um país que não faça desmatamento”.
Além do TUTAMÉIA, participaram da entrevista, realizada em São Paulo, GGN, DCM, Fórum, Rede Brasil Atual, Blog da Cidadania, Jornalistas Livres e 247. A seguir alguns trechos:
TODOS TÊM DIREITO À SOBERANIA
“Tenho clareza do papel histórico dos EUA. Muitas coisas que acontecem no Brasil dependem menos da ingerência dos Estados Unidos e dependem mais do complexo de vira-lata da elite brasileira. É ela que permite, que, muitas vezes, chama esses golpes para dentro do Brasil. É assim historicamente. Quando se dizia que os EUA tinham participação no golpe de 64, todo mundo que dizia isso era chamado de conspirador. Aí vem a informação, o telefonema do embaixador americano recebendo ordem do presidente Kennedy, para fazer o que tinha que fazer aqui no Brasil. Nós temos fita, nós temos vídeo de procurador americano festejando a minha prisão. Temos dados, informações do procurador da suíça fazendo toda a canalhice que fez.”
“Eu aprendi desde muito pequeno que, quando a gente não se respeita, ninguém respeita a gente. Tive uma relação muito séria com o presidente Bush. Dia dez de dezembro de 2002, já eleito, fui aos EUA conversar com o Bush. Primeiro, eu fui à Argentina e ao Chile; eu queria mostrar o meu compromisso com a integração sul-americana. E, quando eu cheguei lá, o Bush passou 40 minutos me convidando para a guerra do Iraque. Inclusive dizendo que, se o Brasil participasse da guerra, o Brasil poderia participar da reconstrução do Iraque. Eu disse para o Bush: ‘Não conheço o Saddam Hussein, o Iraque fica quase a 14 mil quilômetros do meu país; ele nunca me fez nada. O meu inimigo é a fome, não é o Saddam Hussein’. Acabou. Nunca perdi relações de amizade com o Bush. Ele tratou o Brasil muito dignamente. Depois, tive uma boa relação com o Obama. Obama não foi tão cortês como foi o Bush na relação comigo. [No caso da] espionagem no Brasil, ele pediu desculpas para a Ângela Merkel, mas não pediu para a Dilma.”
“Como vou tratar os EUA? Primeiro, trato com o respeito que eles merecem. Agora, eu quero que eles me tratem com o respeito que o Brasil merece. Eles têm que compreender que o Brasil é o país mais importante da América Latina, é o país maior do ponto de vista da população, maior economicamente. E o Brasil tem interesse em crescer junto com todos os países da América Latina e da América do Sul. O Brasil pode ser um grande protagonista da América do Sul. O Brasil pode ser um parceiro porque o Brasil não pode querer crescer sozinho.”
“O que os EUA precisam aprender é que o Brasil não é serviçal deles. O Brasil é um país soberano, que define a sua política externa. E, da mesma forma que o Brasil respeita a política externa dos EUA, nós queremos que ele respeite a política externa do Brasil. Só isso.”
“Nós não somos quintal de ninguém. Vale para os EUA, para a China, para Rússia, para a Índia –e vale para a Guiné Bissau. Respeito é bom, a gente gosta de dar e a gente gosta de receber. É isso que eu posso falar para os EUA. A gente não vai aceitar, como eu não aceitei, interferência.”
“Os EUA não queriam que eu fosse ao Irã. O Obama não queria. Nós fomos lá e, depois de dois dias, conseguimos o acordo melhor do que eles fizeram depois de nós. Bem melhor. Mas a imprensa brasileira, com complexo de vira-lata, não queria que o Brasil fizesse o acordo. Para os vira-latas desse país, o Brasil não tem que se meter. O Brasil não tem tamanho.”
“É preciso a gente se respeitar. Reconheço o valor dos EUA, a importância dos americanos, da China, da Rússia, da Índia, mas reconheço a importância de uma ilha pequena no Caribe. Todos têm o direito de ser soberanos. Cada um age de acordo com sua força –e o Brasil tem muita força. Basta ter coragem de utilizá-la. Agora, se o Brasil tiver um presidente que fica batendo continência para a bandeira americana, se rastejando de quatro aos pés de um presidente como Trump, o Brasil não vai a lugar nenhum”.
“AS FORÇAS ARMADAS NÃO SÃO ISSO”
“Eu não posso balizar as Forças Armadas pelos que estão no governo. Essa gente não representa as Forças Armadas. Estou convencido que você tem um grupo de aproveitadores hoje. O Pazuello jamais poderia ser general com a formação que ele tem, com a grosseria que ele tem.”
“As Forças Armadas precisam entender que não é a farda que mostra o caráter. É a formação eles, é o interesse deles em defender a soberania nacional. Tenho certeza que as Forças Armadas não são isso. Nas Forças Armadas tem gente preocupada com o Brasil, com o desenvolvimento do Brasil, tem gente preocupada com a soberania brasileira, tem gente preocupada com a independência do Brasil. São essas Forças Armadas que nós queremos que prevaleçam no Brasil.”
“ESTOU MAIS SABIDO”; BC COM META DE EMPREGO E CRESCIMENTO
“A dificuldade em tinha em 2002 [antes da posse]. Não tinha presidente do BC, nem sabia quem escolher como comandantes das Forças Armadas. Não conhecia ninguém.”
“Agora eu estou mais sabido. Agora eu sei como funcionam as coisas. As pessoas colocam obstáculo no tal do BC independente. Esse Banco Central tem que ter compromisso é com o Brasil, não é comigo. Ahh, ele vai ter meta de inflação… Vamos colocar meta de emprego, meta de crescimento econômico também. Vamos comprometer com alguma coisa positiva. Que tem que chamar para conversar sou eu; pode ficar certo. Eu não conheço [o presidente do BC], mas, a hora que eu ganhar, eu vou dizer: ‘Vamos conversar um pouquinho aqui, ô meu. Vamos discutir no Brasil’. Eu vejo contrariedade, mas não vejo obstáculo. As pessoas vão perceber”.
MEDO DO PT
“Qual o medo que as pessoas tem do PT? Vai ter problema fiscal?
[Quando eu ganhei as eleições] me falavam: ‘O Brasil está quebrado’. Fomos o único país do G20 que fez superávit primário em todo o nosso mandato. Pagamos a dívida do FMI e emprestamos 15 bilhões de dólares para o FMI e temos reservas de 370 bilhões de dólares. A dívida de 60%, caiu para 35%. Os banqueiros, os empresários ganharam dinheiro. Os trabalhadores também ganharam dinheiro. Geramos 22 milhões de empregos.
“Eles querem uma sociedade de pouco para muitos e muito para poucos”.
ALIANÇAS, TRAVESSIA OCEÂNICA E RECONSTRUÇÃO
“Precisamos compreender o que estamos enfrentando. O Brasil de 2023 será muito mais destruído do que o Brasil de 2003. Vai precisar de muito mais conversa, de muito mais paciência, de muito mais habilidade para você reconstruir esse país. Se fosse fácil reconstruir no grito, estava resolvido. O que você precisa é ter inteligência política, de construir com as pessoas que querem remar junto com você para fazer a travessia oceânica, que não é pequena. Não vai ser fácil a reconstrução do país. Se eu for candidato e ganhar as eleições, [não poso dizer]; ‘Olha, companheiros, eu pensei que ia fazer isso, porém, entretanto’. Se eu entrar é para fazer as coisas diferentes nesse país”.
INSTITUIÇÕES NA MÃO DA PLUTOCRACIA
“Ainda não vencemos. Porque o vencer é o vencer que, além de ganhar uma eleição, nós temos que aprimorar as instituições. As instituições nesse país ainda são compostas pela plutocracia que fez a proclamação da República, ainda no tempo do Império. Quem são os desembargadores, os juízes, os procuradores? Essa gente da casta, do aparelho de Estado é gente muito sofisticada. Ainda não tem ninguém do Prouni, das cotas. Quando essa gente estiver participando das instituições, a gente pode ter certeza que a democracia está se consolidando de forma definitiva no Brasil”.
ESPECIALISTAS EM SOBREVIVÊNCIA
“É preciso envolver a sociedade no debate. Conheci uma catadora com 7 filhos que, aos 37 anos, está se formando em direito. Vamos ter medo do quê. É preciso estimular mais gente a ter consciência. Ouvir a sociedade e discutir bastante. Não faremos a forma um governo de especialistas. Nós queremos ouvir os especialistas em sobrevivência em condições adversas, que é o povo brasileiro”.
ESTADO, INICIATIVA PRIVADA E 200 ANOS DE INDEPENDÊNCIA
“Esse discurso fácil de que o estado é corrupto e a iniciativa privada é honesta –vamos desmistificar isso. Que tudo do estado não presta e tudo da iniciativa privada é bom.
“O que foi a criação das agências? Foi a entrega do Estado para iniciativa privada.
É preciso conversar com a sociedade. Vamos completar 200 anos de independência. Então, temos que discutir que Brasil a gente quer. A partir do olhar do povo brasileiro”.
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