“A esperança é grande de que vamos voltar a um ciclo positivo de governos identificados com as grandes aspirações populares [na América Latina]. Mas a Casa Branca não dorme em serviço. A Casa Branca não vacila. Ela não tem nenhum projeto para o mundo, a não ser a defesa dos interesses dos ricos dos Estados Unidos. Só isso. Eles não agem por princípios. Aliás, como toda a direita. A direita age por interesse. Nos, da esquerda, é que deveríamos agir por princípios. Temos que nos preparar, não sermos ingênuos, lembrando do que aconteceu em 2018, quando as grandes corporações digitais acionaram todos os seus mecanismos para favorecer Bolsonero; hoje isso não está tão fácil quanto antes. Eles vão tentar de novo movimentar os seus algoritmos, os seus robôs, para encher os celulares de todo o tipo de calúnia, mentira, fantasmas, demônios, de modo a evitar a eleição de Lula”.

É o que afirma Frei Betto ao TUTAMÉIA sobre o processo eleitoral deste ano. Nesta entrevista, ele trata do avanço das milícias, do narcotráfico e dos fundamentalistas entre a população mais pobre, defende a retomada do trabalho de base e uma ação mais incisiva da esquerda nas redes digitais. Aponta desafios para um eventual governo Lula. Avalia a prática jornalística, observa as divisões na Igreja Católica e comenta a situação na América Latina e em Cuba (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Frade dominicano, jornalista, escritor premiado, Betto é autor de 70 livros, entre eles, “Cartas da Prisão” e “Batismo de Sangue”. Foi assessor de Lula, no início de seu governo, coordenando a mobilização social do Fome Zero. Na sua visão, o ex-presidente deve voltar ao Planalto no ano que vem, o que deixa a direita muito nervosa:

“Eles estão desesperados. Estão percebendo que o navio deles está fazendo água, que eles não irão adiante, que eles não têm nenhuma chance nessas eleições. Então, entra o desespero. Chega a ser ridículo falar hoje que Lula vai levar o Brasil para o comunismo. Não há comunismo no mundo”.

Apesar desse prognóstico, Betto não tem dúvida da ação norte-americana nas eleições brasileiras. Opina que os EUA também estão buscando uma “terceira via”. Pondera, no entanto, que o Partido Democrata tem demonstrado mais interesse no Leste Europeu, na Rússia e na China, do que na América Latina. “Não é mais uma prioridade como foi no passado”.

Aqui, ele ressalta, “estamos entrando num novo período de volta dos governos progressistas; há uma reviravolta no panorama político do continente”.

FORÇAS DO MEDO, COLONIALISMO E DOMESTICAÇÃO JORNALÍSTICA

Para o escritor, há tarefas urgentes para a oposição no Brasil:

“Temos que trabalhar intensivamente desde agora para que essa vitória [de Lula] se consolide. Mas não basta eleger o Lula. É preciso também pensar na formação do novo Congresso Nacional, nas eleições dos governadores, das assembleias legislativas. Não podemos esperar a data inicial de início das campanhas para começar a batalhar por um Brasil novo. Temos que iniciar isso imediatamente. Porque não há tempo a perder”.

Continua Betto:

“A direita, os fascistas, os neofascistas já atuam aguerridamente, e nós, os progressistas, de esquerda precisamos nos capacitar melhor na questão de lidar com as redes digitais. Duas atividades são prioritárias: a capacitação em lidar com o mundo cibernético e a volta ao trabalho de base. Precisamos voltar ao povão, voltar às bases populares, porque são elas que decidem o destino do Brasil.

“Lamentavelmente, nós, da esquerda, abandonamos o trabalho de base nas últimas décadas. Isso fez com que esse espaço popular fosse progressivamente ocupado por um cristianismo fundamentalista, tanto de perfil evangélico quanto católico, pelo narcotráfico e pelas milícias. Temos que voltar ao trabalho de base porque muitas lideranças respeitadas no Brasil hoje vieram dessas classes populares, inclusive o próprio Lula, que conheceu a miséria”.

Para o frade, novos atores nas classes populares representam forças que operam a partir do medo. “O narcotráfico, a milícia, o fundamentalismo religioso, com vocabulários distintos, semeiam o medo”, afirma.

Ao TUTAMÉIA, Frei Betto fala de colonização na área cultural e de um jornalismo diferente do que ele vivenciou na segunda metade do século passado, em São Paulo:

“Houve uma domesticação da atividade jornalística. Perdemos muito da nossa liberdade crítica, da nossa condição de pressionar os donos dos grandes veículos. Escrevemos muito mais como comentaristas do que como informantes de fatos que ocorrem na população. Onde estão as grandes matérias sobre a fome no Brasil?”