“Eu lanço um apelo. No caso do Arquivo Nacional, é preciso que haja uma espécie de comissão de salvação da memória brasileira, reunindo SBPC, Academia Brasileira de Ciências e todos os órgãos responsáveis pela ciência e pela pesquisa acadêmica no Brasil. Uma comissão que fique de plantão para impedir disparates que podem causar danos irremediáveis, como foi o caso do incêndio do Museu Nacional, que até hoje nos deixa profundamente tristes e furiosos. Pegou fogo, destruiu gravações de cantos indígenas e referências de populações que hoje elas próprias estão extintas. Isso a humanidade perdeu”.

A proposta é do historiador Luiz Felipe de Alencastro. Em entrevista ao TUTAMÉIA, ele alertou sobre as ameaças que que acentuaram sobre o Arquivo Nacional após a nomeação, no último dia 18 de novembro, de Ricardo Borda D’Água de Almeida Braga para o posto de diretor-geral.

Ex-chefe de segurança do Banco do Brasil, ex-subsecretário de segurança pública do Distrito Federal, ele é atirador esportivo e recebeu comenda como “colaborador emérito” do Exército.

“Uma nomeação de quem não tem nenhuma formação para dirigir um órgão tão importante como o Arquivo Nacional. As qualificações de Borda D’Água são todas ligadas à segurança pública. Não há a mais remota indicação de que ele tenha alguma vez estado habilitado a essas funções, como determina a administração pública”, ressalta o historiador.

Autor de “O Trato dos Viventes” (2000), professor na Sorbonne, na Unicamp e na Fundação Getúlio Vargas, Alencastro é um dos principais intelectuais do Brasil.

Nesta conversa com TUTAMÉIA, ele fala dos cotidianos ataques à memória, história, cultura, ciência e educação desferidos pelo governo Bolsonaro –um projeto de destruição onde se enquadra da recente nomeação no Arquivo Nacional. Trata da situação política, da ascensão da extrema direita no mundo, dos cenários para as eleições de 2022 e de tramoias como a ideia golpista do semipresidencialismo (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Alencastro lembra que no Arquivo Nacional há documentação sobre a história do Estado brasileiro, do século 16 ao século 21, com milhares de documentos, textos, fotografia, filmes, mapas, registros sonoros. Ressalta a documentação para referência de demarcação de terras indígenas, terras quilombolas. Há também no acervo a documentação da Comissão Nacional da Verdade, do Conselho de Segurança Nacional, do Serviço Nacional de Informações.

“Legalmente, a documentação não pode ser destruída, mas ela pode ser transferida, por um ato do diretor do Arquivo, para outro local público, para uma instalação militar, para uma caserna, por exemplo. E acesso dos pesquisadores e a conservação desses documentos fica submetida ao astral que existir no Brasil ou no comando daquela caserna. É esse o problema também”, afirma o historiador.

Por isso, ele defende a criação da comissão de salvação da memória. “É preciso que a gente esteja alerta. É preciso que os órgãos tutelares da ciência e da pesquisa universitária brasileira, como a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, a Associação Nacional de História, se envolvam nisso também”, diz.

Alencastro destaca que “o cargo de diretor do Arquivo Nacional virou cargo de barganha política no Congresso, o que agora vai se acelerar. Essa nomeação é consequência disso. Mas ela se insere numa política de perseguição científica e de espírito antirracional desse governo”.

Alencastro ressalta as consequências nefastas de ações como o adiamento do Censo, os cortes nas bolsas de pesquisa, as interferências na Capes e no Enem. E afirma: “Há um apagão também da indignação das universidades dos pesquisadores da opinião pública”.

EXTREMA DIREITA E ATAQUES AO ESTADO LAICO

Na análise do historiador, houve uma revolução entre aspas da extrema direita nas eleições de 2018. “O fenômeno Bolsonaro é também o Major Olímpio, que virou o senador mais votado da história de São Paulo, é a eleição do Zema, do Witzel. Há uma eleição no Congresso, nos Estados de lideranças políticas reivindicando abertamente plataformas obscurantistas, antirrepublicanas”.

Para Alencastro, a própria ideia de “Deus Acima de Tudo”, que virou política nacional, é um acinte à laicidade do Estado.

“Uma criança que seja ligada e crente de cultos afrodescendentes e de qualquer religião que não seja monoteísta se sente humilhada e perseguida. Aliás há uma perseguição física, criminosa, incentivada por esses setores fanáticos neoevangélicos no Rio de Janeiro, em ataques e destruição de terreiros de religião afro-brasileira. ‘Deus Acima de Tudo’ tem a ver com isso também. O Estado laico protege todas as religiões”, afirma. Ele segue:

“O jurista Hédio Silva, que defende muito a questão dos cultos afrobrasileiros, contou que só no distrito de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, há três atentados por dia contra terreiros afro-brasileiro. Por dia! Quando alguém põe pneu queimando perto da estátua do Borba Gato há uma gritaria nacional. Quando as estátuas dessas divindades são destruídas, em lugares modestos, não sai nem notícia no jornal”.

“É a isso que leva esse fanatismo religioso também. Não é só defesa da democracia. A defesa do Estado laico ficou mais nítida do que nunca. É um privilégio que nós temos no Brasil, pela república instalada pelos militares positivistas. Que também tinham uma noção de saúde pública e de campanha de vacinação que está sendo renegada, está sendo aviltada pelo governo hoje”, declara.

Apesar do quadro tenebroso produzido pelo governo Bolsonaro, Alencastro enfatiza o papel de servidores públicos comprometidos com o Estado:

“O que estamos assistindo hoje no Brasil, no SUS, no Ministério da Educação e aqui no Arquivo Nacional é o trabalho discreto de funcionários públicos. Justamente por não serem burocratas são patriotas, são republicanos. Queria elogiar eles todos aqui que têm a noção do Estado brasileiro, da continuidade do Estado brasileiro, que vai celebrar o ano que vem os seus 200 anos. É uma performance rara”.

Segue o historiador:

“A perenidade do Estado brasileiro e da conservação do território e da administração pública –primeiro imperial e, depois, republicana– é algo que não é banal. Eu vivi quase 40 anos na França. No meio tempo sumiram países. A Iugoslávia sumiu. Outros se dividiram, como a Tchecoeslováquia. A URSS acabou. Outros países sugiram. É paradoxal porque as Américas –e a América Latina– têm os Estados nacionais mais sólidos”.