“É um horror diariamente acompanhar o caminho desse desgoverno. É um horror que só me dá vontade de gritar: Bolsonaro, a culpa é sua! A culpa é do seu governo! Minha preocupação agora é com a formação de uma frente com partidos, com movimentos, com sindicatos, com entidades de direitos humanos, uma frente de fora Bolsonaro. Temos que organizar essa frente ampla no sentido do pacto pela vida, com todos aqueles que se empenham em nos livrar desse governo. O presidente não é doente, mas a política dele é patológica. É a necropolítica. E, por isso, não pode continuar. A morte está batendo na perna da gente. Acho que é possível que em torno dessa luta pela vida consigamos organizar essa frente ampla fora Bolsonaro”.
O desabafo é da socióloga Maria Victória Benevides, uma das intelectuais mais importantes do país, ao TUTAMÉIA. Professora da USP e integrante da Comissão Arns, entre outras entidades, ela é militante histórica da defesa dos direitos humanos. Seu diagnóstico nesse campo é cortante:
“Esse governo é tão tenebroso que viola rigorosamente todos os direitos humanos. Não imaginávamos que teríamos tanto horror e violação dos direitos humanos num regime que oficialmente não é uma ditadura, com um presidente eleito, com as instituições funcionando, com eleições etc.”
Nesta entrevista (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV), ela faz um diagnóstico do país, trata da ascensão da extrema direita e analisa as dificuldades do campo progressista no enfrentamento do desastre que toma conta do país, no dia em que o número de mortes pela Covid chega aos 180 mil.
“Bolsonaro veio para destruir tudo aquilo que está aí. Encheu o governo de militares, seguiu o caminho de políticas econômicas as mais desfavoráveis para a maioria da população. Tornou o nosso país um pária internacional e ainda se orgulha disso. Com a pandemia, aí, foi o descalabro total. Eu considero que o presidente Jair Bolsonaro é culpado por um número exponencial de mortes pela Covid 19, na medida em que ele ignorou todas as recomendações da OMS. Ficou trocando de ministro da saúde porque não concordava com as medidas profiláticas de espaçamento social, de uso de máscara. Agora países já estão vacinando o seu povo na Europa. Há várias vacinas, e não há o menor planejamento para levar a bom termo a vacinação do povo brasileiro”, afirma. E enfatiza:
“Muita gente acha o presidente demente, louco. No máximo, ignorante e grosso. Acho que esses adjetivos são suaves, porque de alguma maneira o absolvem. Demente, louco… é uma doença. Portanto diminui a responsabilidade dele. Pode-se dizer que ele seja louco no sentido metafórico”.
Autora de clássicos da história política brasileira, como “O Governo Kubitschek”, “A UDN e o Udenismo”, “O PTB e o Trabalhismo”, Maria Victoria avalia paralelos entre a situação atual e outros momentos do país. Fala do movimento integralista, do lacerdismo, da ditadura militar e dos movimentos pela redemocratização.
“Nós, que vivemos a ditadura civil militar inaugurada com o golpe de 1964, acreditávamos que já tínhamos visto tudo de horror. Tivemos a democratização, a Assembleia Constituinte com intensa participação popular, a anistia imperfeita, mas que foi suficiente para trazer os banidos e os exilados. Depois, tivemos os governos social-democratas, oito anos de governo Lula e o governo Dilma. De certa maneira, nós achávamos que tínhamos chegado num ponto razoável. Por exemplo, a abertura da universidade para cotas raciais e sociais foi um dado muito positivo no enfrentamento das desigualdades abissais do país”.
Maria Victoria avalia que o início do ponto de virada da situação ocorreu em 2013, com o surgimento de “um movimento que repudiava a ação política, a mediação de partidos políticos”. Lembrando do movimento pela anistia, das Diretas Já, da participação popular na Constituinte, ela se recorda que aqueles protestos a incomodaram profundamente. “Depois veio o golpe contra a presidente legitimamente eleita sem crime de responsabilidade. Com o golpe, o vice assume com um modelo neoliberal que só reforça as nossas desigualdades. O caminho foi preparado para o coroamento dessa visão profundamente equivocada de recusar a política”.
Nesse exame da conjuntura atual, observa a atuação do Judiciário. “O poder judiciário muitas vezes é protegido de críticas. Mas é justamente nesse desgoverno que a cara verdadeira do poder judiciário apareceu. Estamos acompanhando casos em que a ideia de justiça simplesmente não existe na cabeça de juízes ou promotores, chegando a altas instâncias. Há dificuldade de discutir o sistema prisional, o sistema de acolhimento às doenças mentais, ao trabalho antimaniconial, a casos como o da cracolândia. Vemos um desinteresse de uma maneira revoltante de setores do judiciário. É preciso apoiar a defensoria pública, mas vejo que ainda estamos muito atrasados no caso dos direitos humanos que atinge os mais pobres. Faz um ano de Paraisópolis; 1000 dias do assassinato de Marielle”.
Apesar do quadro tenebroso, a socióloga vê sinais positivos na sociedade:
“Participo de várias entidades que lidam com direitos humanos. Tem muita gente mobilizada. Foi refundada a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos no mês passado. Já está em funcionamento em mais da metade dos estados do país. Estou acreditando muito que nós vamos conseguir a frente ampla fora Bolsonaro. É preciso não renunciar à luta”.
PS.: Durante a entrevista ao TUTAMÉIA, a professora Maria Victoria Benevides identificou nas manifestações de junho de 2013 a gênese do movimento antipolítica que teve sua expressão máxima na eleição de Bolsonaro em 2018. Na época, ela escreveu um artigo sobre o tema, publicado então na revista “Brasileiros” e a seguir republicado com autorização da autora.
EM DEFESA DA POLÍTICA
Maria Victoria de Mesquita Benevides
“Foi bonita a festa, pá!” Para os jovens que não a viveram e para os ‘coroas’ esquecidos – e hoje temerosos ou entusiasmados com a mobilização iniciada pelo Passe Livre – vale a pena lembrar a luta política contra o regime civil-militar instalado com o golpe de 1964. Boa parte da oposição se organizava através de movimentos sociais, organizações de base, sindicatos, igrejas, imprensa, associações profissionais e culturais, universidades, meio artístico, entidades de direitos humanos, partidos, abrangendo um amplo arco das esquerdas aos liberais, ambos de vários matizes. Pela primeira vez em nossa história tivemos uma efetiva participação popular no processo constituinte (plenários, comitês locais, audiências públicas, milhões de emendas populares, manifestações) que desembocou na Constituição vigente. E esta Carta acolheu instrumentos de democracia direta, agora legitimamente evocados.
Quero chamar a atenção dos atuais manifestantes, dos quais muitos expressam certo “nojo” pela política (sobretudo devido aos partidos) para o fato de que, embora aquela árdua luta pela democratização, principalmente depois da Anistia, tenha se dado num momento de transição da ditadura para o Estado de Direito, em vias de uma ruptura institucional, não se renegou o caminho necessário da política, com clareza dos objetivos e dos meios. No caso específico da Constituinte, o objetivo era participar do processo decisório, de forma organizada e com instrumentos adequados e eficazes, para não dar uma carta branca para os legisladores. E isso foi feito, haja vista, entre outros, o capítulo avançado sobre direitos sociais. É evidente que as garantias desses direitos ainda são precárias – mas o passo decisivo foi dado e a luta continua. Democracia é processo, é conflito, é direito da maioria com respeito às minorias e à diversidade, é participação, é soberania popular no contexto das leis legitimamente elaboradas.
A mobilização de hoje quer, com toda a razão, tudo a que tem direito, transporte, saúde, educação, moradia, segurança … e é contra tudo que identifica como a política dos partidos, dos poderes constituídos, da corrupção “generalizada”. Mas é claro que esse povo nas ruas está fazendo política – o que é bom – mas está perdendo o rumo e repudiando mediações políticas – o que é perigoso. Daí a necessidade imperiosa de refletirmos sobre aquilo com que nós, cientistas sociais e juristas, podemos contribuir.
Depois de dias de perplexidade, a presidente Dilma saiu da defensiva e retomou a liderança política – o que é bom – e vem a público prometer reforma no sistema de representação e apresentar outras propostas ousadas e polêmicas – o que exige ampla discussão. A proposta inicial, de debater com a sociedade uma Assembleia Constituinte para um tema específico, é um contrassenso. O poder constituinte originário é soberano: pode tudo, a começar por revogar a Constituição vigente. A convocação de um plebiscito para aprovar tal “constituinte temática” fica, pois, comprometida. Diante das dificuldades jurídicas, o próprio governo logo indicou que esse não era um bom caminho. A reforma política é necessária e pode ser feita por mudanças na lei partidária e eleitoral. É saudável consultar a vontade do povo. Mas não é preciso mexer daquela forma na Constituição. No entanto, não há dúvidas de que a presidente abriu um caminho promissor para enfrentar duas questões cruciais neste momento de crise: a reforma política, sempre chamada de “a mãe das reformas” e nunca decidida; e o recurso aos instrumentos constitucionais para a participação direta do povo, a começar pelas consultas populares.
Quanto a isso, não será preciso inventar a roda. Já existe um considerável debate, na academia, no meio jurídico e parlamentar, sobre o tema. Já tivemos referendos nacionais e consultas locais. Vários projetos podem ser desengavetados no Congresso.
Desde a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia – iniciada pela OAB em 2004, com apoio de várias entidades – estão atualmente em tramitação propostas que versam sobre mecanismos de democracia direta, não como “usurpação” do poder Legislativo, mas como aperfeiçoamento da democracia representativa. Entre estas destaco: 1. Emenda constitucional sobre referendo revocatório de mandatos eletivos ou recall (recentemente defendido pelo ex-ministro Rubens Ricupero) no Senado, nº73/2005; 2.Projeto de Lei sobre plebiscito, referendo e iniciativa popular, também no Senado, nº 01/2006; 3.Proposta de emenda constitucional sobre revisão da Constituição, atualmente em deliberação no Conselho Federal da OAB. Aliás, o caminho mais útil para acelerar a decisão seria levar a voto o projeto de lei nº 4.718 que está na Câmara por iniciativa da Comissão de Legislação Participativa, com o constante estímulo da deputada Luiza Erundina. Tal projeto, como o que está no Senado há menos tempo, objetiva tornar viável o recurso a consultas populares e à iniciativa legislativa, a fim de corrigir o enfoque extremamente rígido da regulamentação de 1997, que mais bloqueia do que incentiva a participação popular.
O povo não se acomodou deitado no “berço esplêndido” e se levantou, como em vários outros momentos de nossa história. Aos 70 anos – idade da “juventude acumulada” – participei de quase todos. Estou convencida de que esta mobilização de hoje, por mais heterogênea que seja, pode favorecer o exercício da cidadania ativa democrática, assim como alcançar respostas positivas dos governantes. Mas pode também abrir caminho para saídas autoritárias e elitistas.
Fora da política não há salvação. Só a violência.
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