“Destruíram o Estado, destruíram as empresas públicas, destruíram o governo democrático que tinha sido eleito, elegeram um governo autoritário. É muita paulada junta para você querer que ainda haja força na esquerda para fazer propostas. Mas elas têm sido feitas. Mas qual a condição política de implementá-las? A gente tem um nó político hoje que passa em primeiro lugar por tirar esse povo do governo. Enquanto Bolsonaro e a sua trupe estiverem aí, a gente vai fazer proposição, espernear, apresentar propostas, mas que condição se teria? O jogo é sujo, bruto, em cima de mentira, de falsidade. Há muita limitação. Você vai propor o quê com um governo desses, com Guedes, Damaris, Ricardo Salles, Pazuello? Não tem o que falar. É Fora Bolsonaro!. Não tem jeito”.

Palavras de Leda Paulani ao TUTAMÉIA. Professora titular de economia da USP, secretária de Planejamento, Orçamento e Gestão da prefeitura de São Paulo no governo de Fernando Haddad, ela acaba de ser eleita personalidade econômica do ano pelo Conselho Federal de Economia. Para ela, não há dúvida que Bolsonaro faz o pior governo que o Brasil já teve. “Quando falavam que Collor era um horror, eu pensava: Puxa, mas o governo Dutra foi um horror, destruiu coisa pra caramba. Mas o Bolsonaro redimiu todo mundo: Collor, Dutra, Sarney. Até o Temer acho que ele redimiu. Porque o Temer, pelo menos, tinha mais compostura. A gente não estava tão envergonhado perante o mundo”.

Nesta entrevista, a economista marxista analisa os efeitos da pandemia no capitalismo global e no Brasil. Trata de desigualdade, desemprego, inflação, reservas internacionais. Examina o debate no meio acadêmico. Condena o teto de gastos, considera “um absurdo” o projeto de “independência” do Banco Central e define como “um crime” a proposta que libera a abertura de contas em dólares no país. Avalia a trajetória de desenvolvimento do país e as razões da situação atual (acompanhe a íntegra no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV). Fala Leda:

“A epidemia mostra que você tem que ter um Estado que comande a nação. E esse governo é o antiEstado. É o que vai destruir o Estado, que só quer a política pública capaz de reeleger o Bolsonaro. Se ele pudesse destruir o SUS para fazer o auxílio emergencial ele destruía. O SUS é universal. Você pode ser um morador de rua ou ganhar 40 mil reais de salário. Se você ficar doente, o hospital público tem que te atender. É uma questão de civilidade. O SUS é um marco civilizatório. É óbvio que eles não gostam do SUS. Eles gostam da política em que o mercado conta dá conta de tudo, onde tudo é compra e venda. Ah, mas tem uns coitadinhos que não conseguem ter renda. Então eu dou uma renda para eles, acabou, ponto. O Estado vira isso, e a nação vai para o ralo. Porque não tem nação desse jeito. A história mostra que não tem nação assim”.

 

FALTA UMA ELITE CONSCIENTE NO PAÍS

E segue:

“O Brasil está numa situação difícil porque a gente precisaria ter, em primeiro lugar, uma elite consciente. Estamos falando de nação burguesa, dentro do capitalismo. Não estamos falando de revolução socialista. Quem construiu os Estados nacionais fortes foram as burguesias desses locais. Foram as elites desses locais que entenderam que tinha que ter um Estado nacional forte para ter uma economia forte, para ter um país forte. Nós não tivemos isso nem temos. Olhe o que estão fazendo os grandes chaebols na Coreia do Sul, LG, Hyundai, Samsung. Estão ajudando o Estado no enfrentamento da pandemia. Ali tem um nacionalismo de verdade; não é esse nacionalismo de fanfarronice do Bolsonaro. Há consciência nacional das elites coreanas. Aqui a gente não tem. A nossa elite hoje está fechada com o governo Bolsonaro; ou é agronegócio ou é a elite financeira. Foi o que sobrou. A indústria que sobrou está mal e mal tentando sobreviver nesse ambiente tão hostil. Precisaríamos ter essa elite”.

Na análise de Leda Paulani, as consequências do modelo adotado no Brasil estão claras:

“A epidemia mostrou que é uma loucura essa coisa de vantagens comparativas globais, onde você pode depender só de dois ou três produtos que você exporta e o resto você importa. Num momento como esse, se a gente tivesse uma indústria afiada, a gente não ia depender de ninguém para ter máscara. EPI, respirador. Mas não. Você destruiu a indústria, que foi uma indústria potente. Foi no Brasil que teve a única indústria mais consistente da América latina. Graças aos 50 anos de nacional desenvolvimentismo, militares incluídos. E, de repente, tudo isso vai sendo destruído. A política macroeconômica contribuiu para essa destruição, com décadas de apreciação cambial desde os anos 1990, com FHC. Agora se está no ápice disso”.

 

DESTRUIÇÃO DA SOBERANIA

A situação se agrava, ressalta a ex-secretário da prefeitura paulistana, com a lei do teto de gastos:

“O teto de gastos transformou a economia da União numa economia de Estado e município. Pior ainda. Você não constrangeu pela receita do Estado, mas pelo nível de gastos. Todos ficam fazendo propostas de reforma tributária, tributos sobre grandes fortunas. Se, milagrosamente, a gente aprovasse amanhã um imposto sobre grandes fortunas e fizesse uma reforma tributária que começasse a tributar lucros e dividendos da pessoa física –o que ia aumentar muito a receita da união–, ia ter impacto zero no nível de gasto público. Efeito zero para resolver esse xadrez político colocado agora para o governo. Porque a restrição do teto é sobre o gasto; não basta a receia crescer. O gasto é limitado, ponto. O governo federal ao aprovar isso –é tão estúpido, não é?–, ele mesmo se limitou nos graus de liberdade que ele pode ter com os instrumentos que ele possui para poder conduzir a economia”.

Leda classifica como “um absurdo” o projeto que estabelece o Banco Central “independente”. Lembra que há muito tempo o BC vem operando nesse diapasão. “Desde FHC a gente tem de fato um BC independente. Passa a olhar determinados parâmetros e a operar muito pautado pelos interesses do mercado. Como se a obrigação do BC fosse sempre estar de bem com o mercado. Se elege uma pressão para atender, e o resto da economia não importa. Eles querem consagrar isso de vez. Querem desconectar o mandato do presidente do BC com o da Presidência da República. Desconectar a política monetária do resto do país, de sua política e economia. É um absurdo ainda mais nesse mundo de hoje. Mas é moeda de troca no Congresso”.

Ela aponta para outros “projetos mais assustadores”, como o que permite que os cidadãos brasileiros tenham contas em dólar no Brasil. “Isso vai destruir a moeda brasileira. Isso é um crime. O real é uma boa moeda. É inacreditável, é de chorar. Isso seria a consagração da destruição do país enquanto uma economia soberana num contexto que não tem a menor necessidade. Não somos uma economia pequenininha, perdida no oceano. Somos uma economia gigante. Que tem tranquilidade do ponto de vista externo. Que tem a porcaria de um governo e de uma política neoliberal que destruiu muita coisa. Daí você destruir a moeda do país?! Porque vai destruir, não tenho dúvida”.

 

COLAPSO DE UM MODO DE VIDA

Num exame mais amplo da situação, diz Leda:

“A covid-19, pelos impactos que produziu, pôs a nu uma espécie de colapso num determinado modo de vida. Não vai ser tão rapidamente que o mundo vai se dar conta de que esse modo de vida está colapsando. Economistas tendem a achar que a pandemia é uma espécie de variável exógena, um ET, que apareceu repente apareceu e bagunçou a vida dos humanos na terra. Não é verdade. Cada vez mais está ficando claro que um determinado modo de produção material da vida vai gestando esses resultados muito funestos. É um modo de produção material que é cego a qualquer outra variável que não seja lucro e acumulação de capital. A desigualdade, a pobreza e a miséria vão se tornar ainda mais profundas”.

Sobre sua premiação como personalidade econômica do ano, pelo Conselho Federal de Economia, declara:

“Fiquei absolutamente surpresa de ser eleita personalidade econômica do ano. Esse ano é um ano que coisas muito estranhas acontecem. Até uma marxista como eu ganhar um prêmio como esse. Fiquei muito agradecida, mas realmente fiquei muito surpresa”.

E o seu recado de conclusão:

“Vamos esperar que a gente consiga derrotar em primeiro lugar Bolsonaro e, depois, botar a nação nos trilhos”.