A dois anos de completar cinquenta anos de profissão, um dos mais experientes jornalistas esportivos do país –e também um dos mais processados—Juca Kfouri afirmou ao TUTAMÉIA que o Brasil tem hoje “um futebol de terceira divisão mundial”.

Numa entrevista em que conversamos sobre política, Lula livre, legislação esportiva, guerra de torcidas, branqueamento dos estádios e democracia corintiana –não deixe de assistir ao vídeo, clique no alto desta página–,  Kfouri lembrou que a presença média de público nos jogos do Campeonato Brasileiro é inferior à participação de torcidas em campeonatos de segunda divisão da Inglaterra e da Alemanha.

Politicagem, corrupção, globalização, omissão e/ou conivência da mídia são algumas das causas do esvaziamento do mundo brasileiro da bola, na opinião dele. Direto ao ponto, o jornalista aponta:

“A gente gosta de dizer, porque brasileiro adora um autoengano, que somos o país do futebol. Somos nada! Nós fomos o país do beautiful game, o jogo bonito, o país que teve os melhores jogares do mundo, por um tempo que talvez nunca mais se repita na história. Sem exagero, dá para dizer que durante cinquenta anos o Brasil produzir os maiores jogadores de futebol do mundo: Mané Garrincha, Pelé, Didi, Nilton Santos, depois Tostão, Rivelino, Gérson, Jairzinho, depois Romário, depois os Ronaldos.”

Hoje, a situação é diferente. Um dos motivos da falta de craques nos estádios brasileiros, diz Kfouri, é que “começamos a exportar pé de obra muito cedo, a ponto de alguns meninos irem lá para fora, e a gente só tomar conhecimento deles quando começam a brilhar no futebol europeu”.

É um reflexo da globalização que também atinge o futebol, que deixou o Brasil numa posição de mero “exportador de pé de obra”, segundo a análise de Kfouri:

“Na indústria do entretenimento, o esporte ocupa um espaço enorme, e o futebol um espaço tão grande quanto. Os clubes europeus começaram a se organizar de uma maneira e a gerir seus campeonatos como negócio. E transformaram países periféricos em exportadores de pé de obra.”

“De commodities”, provocamos. E Juca confirma: “De commodities. Não é muito diferente do Brasil colônia, do começo da industrialização do Brasil. Exportávamos café etc. Hoje exportamos jogadores de futebol. Exportamos os artistas em vez de exportar os filmes. É isso!”

À mingua de talentos se somam outros problemas, entrando até no perigoso terreno da criminalidade, que Juca Kfouri não deixa de denunciar:

“O futebol –o esporte em geral, mas o futebol em particular—é uma área muito propícia para a lavagem de dinheiro, por causa da intangibilidade dos preços. Quanto vale o Messi? Ninguém sabe… Quanto vale o Cristiano Ronaldo? Ah, vale um bilhão. E quanto valeria o Pelé? Cinco bilhões… Ninguém sabe… Isso permitiu que os dirigentes, os cartolas brasileiros, passassem a gozar de uma vida de fartura, mas que os clubes brasileiros se empobrecessem.”

Uma das consequências, diz ele, é a falta de atratividade do futebol brasileiro:  “Não há mais nenhum clube brasileiro que seja, por exemplo, objeto de desejo em excursões pela Europa”.

Isso acontece também porque o calendário do futebol brasileiro não acompanha o do futebol mundial. “Nós não fomos capazes de responder de maneira correta a esse esforço do futebol mundial, de gerir o futebol de maneira diferente”.

E ele segue:

“Eu sempre digo: não é que a estrutura do esporte no Brasil seja conservadora, ela é muito mais do que conservadora, ela é profundamente reacionária, avessa a qualquer tipo de mudança, profundamente corrupta e corruptora.”

Sobre corrupção, diz: “Não preciso ir longe, basta ver isso: o senhor José Maria Marin está preso nos Estados Unidos, o senhor Ricardo Teixeira e o senhor Marco Polo Del Nero –estou falando dos três últimos presidentes da CBF—não podem sair do Brasil porque, se saíram, a Interpol pega. Por corrupção e denúncias feitas pela Justiça suíça, pela Justiça espanhola, pela Justiça norte-americana…”

Exatamente por, há décadas, denunciar negociatas e trampolinagens do mundo da cartolagem, Juca Kfouri já tomou mais de cem processos nas costas. Ele diz que, no passado, esse foi um trabalho muito solitário. Hoje, afirma, há mais repórteres atuando na investigação de atividades irregulares na administração do futebol brasileiro.

No geral, porém, a cobertura é falha. Por que isso acontece?, perguntamos a ele, que apontou as seguintes causas, pontuando cada uma delas com numerais:

“Por quê? 1. É mais confortável e dá menos trabalho. 2. Evita processos judiciais. 3. Que é essencial, mais do que os dois outros argumentos: a televisão, que quer ter exclusividade dos eventos, compra o direito do evento como se se associasse a quem vendeu, e não se dá o direito de cobrir jornalisticamente aquilo que comprou.”

A vítima de tudo é o torcedor: “Chegamos à elitização dos nossos estádios. É uma coisa absolutamente angustiante e absolutamente perceptível. Vá ao um jogo do Corinthians e veja como o estádio branqueou”.

Esse “branqueamento” foi um choque para ele, conta, quando foi cobrir um jogo da Copa das Confederações, em 2013, em Salvador: “Era uma partida de uma seleção europeia contra uma africana. Entrei na Fonte Nova, olhava, e não tinha um negro. Na Bahia, na cidade de maior população negra, proporcionalmente, do Brasil. Não tinha negro na plateia –deixa de ser torcida, deixa de ser arquibancada. O jardineiro, que estava cuidando da grama, era negro. O cara que estava no bar, servindo, era negro, mas dentro do estádio não tinha”.

Resumo da ópera, nas palavras de Juca Kfouri: “Conseguimos o suprassumo da exclusão: estamos excluindo o povão de uma das poucas atividades de lazer do povão”.

O que acontece também na política, entende o jornalista, que vem se manifestando sempre em defesa da democracia e contra os processos que tratam de impedir a participação do presidente Lula nas eleições.

Baseado em sua própria experiência profissional, ele considera que o golpe contra a presidenta Dilma diminuiu o Brasil, teve como consequência a retirada do peso do país no cenário internacional:

“Na Copa do Mundo na Alemanha, em 2006, e na África do Sul, em 2010, o número de jornalistas estrangeiros que vinham me fazer perguntas sobre o Brasil, não sobre a seleção brasileiro: sobre o Lula, “o cara”, o doutor honoris causa, era uma grandeza. Agora, fui para a Rússia, passei 40 dias na Rússia. O fato de ser brasileiro rigorosamente era tanto faz como tanto fez. No máximo, queriam saber do Neymar. Sumiu completamente. Impressionante como nós voltamos a ser desimportantes.”

A tristeza com a situação do país, porém, não impede que ele afirme: “Acredito na capacidade que o povo tem de enfim cair a ficha e retomar a racionalidade, eu acho que o candidato que for indicado pelo partido dos trabalhadores, com todos os problemas do PT, que não se deve esconder, tem grande chance de ganhar eleição.”