ONDE ESTÁ MEU MARIDO? ONDE ESTÁ MEU LÚCIO? Dona Liliana perguntava, e todos diziam nada saber. Ninguém sabia nada no Departamento de Pessoal, ninguém sabia nada na Segurança da fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo. As mentiras só pararam quando ameaçou entrar com pedido de seguro pelo marido desaparecido. Ouviu então que talvez devesse procurar no Dops, centro de torturas da ditadura militar em São Paulo naquele ano de 1968. A verdade é que a Volkswagen sabia desde o princípio. O metalúrgico fora preso no seu posto de trabalho e levado para a sala de segurança da montadora, onde já começou a apanhar dos policiais.
Essa é uma das histórias mais conhecidas da trajetória de colaboracionismo da Volkswagen do Brasil com a repressão e a tortura na ditadura militar, diz o jornalista e pesquisador alemão CHRISTIAN RUSSAU em entrevista ao TUTAMÉIA. A colaboração era sistêmica, envolvendo pessoal do comando da empresa, afirma o estudioso, lembrando o caso da prisão de outro funcionário, ocorrida de forma semelhante à detenção de Bellentani:
“No caso de Heinrich Plagge, no mesmo dia em que foi levado ao Dops um alto gerente da VWW foi até a casa da família e falou para a esposa dele que Plagge não voltaria à noite para casa porque tinha saído em viagem em nome da empresa. Configura não somente saber do crime do desparecimento da pessoa, mas também tentar ocultar o desaparecimento –duplo crime.”
Desde 2003 Russau estuda as relações de empresas alemãs com o Brasil. Mas seu envolvimento com o caso Volks começou há seis anos: “Em maio de 2014, tivemos informações sobre isso. Comprei uma ação da Volkswagen, fui à assembleia de acionistas e falei que a gente exigia que a empresa assumisse a responsabilidade pelo seu passado, pedisse desculpas pelo que fez e pagasse indenizações coletivas e individuais”, lembra o ativista, que é autor do livro “O 7:1 na Economia. Empresas Alemãs no Brasil”.
Sindicatos e associações de trabalhadores no Brasil iniciaram a luta por reparação, o que fez com quem a própria Volkswagen realizasse pesquisas e publicou relatório a respeito. Hoje estão em andamento, em segredo de justiça, negociações envolvendo a empresa, o ministério público e representantes dos trabalhadores.
“Até hoje a VW não pediu desculpas pela colaboração com a ditadura militar, com os órgãos de repressão, ainda não pagou indenização individual às pessoas que foram torturadas na empresa, às pessoas sobre as quais a segurança patrimonial da empresa recolheu informações e as passou para o Dops e centros de tortura da ditadura, às pessoas que foram presas dentro da fábrica, levadas ao Dops, que foram torturadas”, diz Russau.
Ele afirma que relatórios comprovaram a colaboração sistemática e sistêmica da empresa com a ditadura. Relatórios da segurança corporativa, denunciando trabalhadores, passavam pela mesa do presidente da VW no Brasil antes de serem entregues à repressão, diz o jornalista. Por isso, no seu entender, a empresa deve, além das indenizações parta as vítimas específicas, uma indenização coletiva: “Um fundo de pesquisa, para que se continue estudando a colaboração das empresas com a ditadura militar no Brasil, e recursos para a construção de um memorial que resgate a história de luta dos trabalhadores e das trabalhadoras”.
A direção mundial da Volkswagen estaria disposta a assumir suas responsabilidades, pedir desculpas e pagar as indenizações devidas, segundo reportagem publicada no jornal de economia “Handelsbratt”, citado por Russau na entrevista (clique no vídeo acima para ver a íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV). O que emperra, diz a matéria, é a posição de diretores da empresa no Brasil, que seriam apoiadores do governo Bolsonaro.
Isso aumenta a importância, no entender do pesquisador, de se chegar a um acordo: “Seia um sinal muito importante para a sociedade brasileira se a Volkswagen assumisse sua responsabilidade histórica, dizendo que democracia e direitos humanos são importantes, mais importantes do que o lucro. Seria um importante sinal para o empresariado brasileiro e seria um sinal também para os bolsonaristas”.
Ele continua:
“Hoje há muitos empresários brasileiros e empresários alemães atuando no Brasil que apoiam Bolsonaro. Essas pessoas deveriam saber: apoiando Bolsonaro eles se tornam cúmplices do genocídio que o governo Bolsonaro está levando para a frente, com negligência na crise do coronavírus, com os ataques concertados deles e dos garimpeiros e dos madeireiros contra terras indígenas…”
E a história cobrará deles, como está cobrando da Volkswagen, afirma o estudioso, que conversou com TUTAMÉIA desde seus escritórios em Berlim.
MEMORIAL
Ao longo da entrevista, Russau citou várias vezes a campanha pela construção de um memorial que resgate as lutas dos trabalhadores contra a ditadura militar. O projeto é tema de manifesto lançado na semana passada e reproduzido a seguir.
CASO VOLKSWAGEN: EM DEFESA DA MEMÓRIA DOS TRABALHADORES E DAS LUTAS CONTRA A DITADURA BRASILEIRA
São Paulo, 03 de agosto de 2020.
O Brasil vive hoje um momento de grave retrocesso. Desde 2016, uma ofensiva conservadora vem minando as frágeis conquistas da democracia brasileira, seja no campo das liberdades políticas, seja na esfera dos direitos sociais e trabalhistas. Esse processo foi potencializado pela ascensão de Jair Bolsonaro ao poder em 2018.Admirador confesso da ditadura civil-militar (1964-1988), racista e misógino, o presidente condensa o pior das elites brasileiras.
Durante a pandemia da Covid-19, sua política negacionista levou o Brasil à marca de segundo país com mais mortos no mundo pela doença.
É nesse contexto de ascensão da extrema direita que ganha ainda mais importância a construção de um espaço de memória que garanta o registro da história de resistência dos trabalhadores e das graves violações de direitos humanos pela Volkswagen e por outras empresas, sempre em parceria com o Estado brasileiro.
O Brasil é dos países mais atrasados do mundo no campo da Justiça de Transição. Apesar dos importantes trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e de Comissões e Comitês da Verdade, da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e da Comissão de Anistia, a recuperação da verdade foi insuficiente e a construção de uma memória coletiva de repúdio ao Terrorismo de Estado, ainda menor. Nenhum agente do Estado foi punido pela sistemática perseguição, prisão ilegal, tortura e assassinato de opositores.
É ainda menos conhecida a atuação empresarial no golpe de 1964. Frequentemente, ignora-se o papel das corporações na conspiração contra o governo democraticamente eleito de João Goulart (1962-1964), na formulação da política econômica da ditadura, no financiamento e aparelhamento da polícia política e na repressão direta a trabalhadores e à oposição em geral. Sua ação teve como objetivo estratégico o rebaixamento das condições de vida da população assalariada, atacando direitos conquistados, achatando salários e impedindo sua organização em movimentos reivindicatórios.
Essa política de esquecimento e não punição permitiu que a extrema direita, com apoio de amplo setor do empresariado, ganhasse novo fôlego, levando ao poder um demagogo que prega abertamente a favor da tortura e do assassinato de opositores.
A importância do Caso Volkswagen
Por esse motivo, o Caso Volkswagen tem importância estratégica. A montadora foi uma das empresas investigadas pelo GT Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical (GT-13) da Comissão Nacional da Verdade, pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva e pelas Comissões da Verdade dos municípios do ABC paulista.
As pesquisas concluíram que a empresa alemã montou, em estreita ligação com a repressão ditadura, um forte aparelho militarizado de vigilância e repressão para monitorar seus empregados dentro e fora de suas dependências; participou de ações de prisão ilegal e tortura dentro de suas unidades; repassou sistematicamente informações de seus empregados à polícia política; coordenou esforços junto com outras empresas e com o aparato de repressão estatal para reprimir o movimento operário; entre outras ações.
Em setembro de 2015, após o encerramento da CNV, a empresa foi denunciada ao Ministério Público Federal, em documento assinado por todas as Centrais Sindicais, juristas renomados e militantes dos direitos humanos. Trata-se da primeira iniciativa política de responsabilização de uma empresa por graves violações de direitos humanos durante a ditadura civil-militar. É um caso paradigmático que, se bem sucedido, pode abrir um novo capítulo na luta por memória, verdade, justiça e reparação no Brasil.
As evidências levantadas no Inquérito forçaram uma negociação da empresa com o Ministério Público sobre a reparação pelos crimes.
A reparação necessária
Desde a abertura do inquérito foi levantada a reivindicação da construção de um lugar de memória das lutas dos trabalhadores e da participação empresarial em violações de direitos humanos na ditadura.
A própria empresa, em setembro de 2015, afirmou à imprensa brasileira que “estuda, entre outras iniciativas, fazer um memorial” (“Volks busca reparar apoio à repressão na ditadura”, matéria no Estado de S. Paulo, 1º de novembro de 2015). A ação padrão das empresas é agir para apagar seus crimes. Para isso, corporações por todo o mundo mobilizam seu poder financeiro e influência política. Não aceitaremos esse tipo de chantagem. Garantir um lugar de memória referência – que tenha em sua gestão e concepção as entidades envolvidas no caso e as organizações dos trabalhadores, que possa ser visitado e conhecido e, ainda, que atue na produção e difusão de conhecimento sobre o tema – é reafirmar que a memória dos trabalhadores e trabalhadoras, assim como de todas e todos que resistiram à ditadura civil-militar, não está à venda.
A resolução do Caso Volks pode se dar por um acordo, que é negociado há anos e sempre postergado por entraves colocados pela empresa, ou, se falharem tentativas de entendimento, pela judicialização.
Seja qual for o encaminhamento, a construção de um lugar de memória é item incontornável.
Em um momento político de ascensão de forças obscurantistas em todo o mundo, e particularmente no Brasil, essa reivindicação se coloca no marco da luta mundial em defesa dos direitos humanos, das liberdades democráticas e das conquistas dos trabalhadores.
Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!
Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva (2012-2015)
Christian Russau, diretoria da Associação dos Acionistas Críticos da Volkswagen – Alemanha
José Luiz Del Roio, ex-Senador da República Italiana e diretor do Instituto Astrojildo Pereira
José Sérgio Leite Lopes, antropólogo e professor do Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Ivan Akselrud de Seixas, coordenador da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva (2012-2015) e assessor especial da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014)
Pedro Henrique Campos, professor de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e integrante do Grupo de Trabalho Empresariado e ditadura no Brasil
Rosa Cardoso, comissionária da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) e coordenadora do Grupo de Trabalho Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical (GT-13)
Sebastião Neto, secretário-executivo do Grupo de Trabalho Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical (GT-13) da Comissão Nacional da Verdade (2013-2014) e coordenador do IIEP
Comissão da Verdade dos Trabalhadores e do Movimento Sindical de Minas Gerais (COVET-MG)
Comissão Memória e Verdade da UFRJ
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