“Com o professor e leitor, tenho notado como faz diferença a gente oferecer minimamente um pouco de escola, um pouco de condições –uma coisa que o Brasil negou para os debaixo desde sempre. Não sou exatamente um pessimista com o que está acontecendo. Olho para o que está acontecendo com essa amargura de ver muita coisa bloqueada, mas vejo que tem muita coisa acontecendo de bacana que vai permanecer. Estamos vivendo um novo momento da produção cultural”.

A avaliação é de Luís Augusto Fischer ao TUTAMÉIA (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV). Professor de literatura na UFRGS, ele fala sobre os modernistas, o legado da Semana de 1922, o impacto da internet na linguagem e a cena cultural do país. Autor de “Duas Formações, uma história -das Ideias Fora do Lugar ao Perspectivismo Ameríndio” (Arquipélago, 2021) e do “Dicionário de Porto-Alegrês (L&PM) e editor da revista digital “Parêntese”, ele afirma:

“Há uma crise de financiamento, esse bloqueio assassino que tem sido feito para as fontes de financiamento, uma revisão da lei Rouanet que parece que atende só a uma ideia de sufocamento da cultura mais ativa, mais viva, mais crítica. Por outro lado, dá para ver que há uma produção cultural periférica, de negros e negras, que está explodindo. Desde um plano muito sofisticado, como romance, poesia, alguma coisa de vídeo, filmagens, até atividades do tipo comunitários, como os festivais de poesia falada… Acho que tem uma coisa muito viva acontecendo, e que talvez não seja no ambiente de classe confortável em que a gente costuma viver”.

Fischer observa o contexto dessas mudanças:

“A gente está num momento politicamente medonho, enfrentando um inimigo que acho que a nossa geração não imaginava ter de enfrentar. Por outro lado, acho que a gente abriu caminho, a nossa geração e os governos democráticos que aconteceram há pouco tempo ajudaram a florescer. Escola para todo mundo –é uma escola ainda precária, ruim, o salário dos professores é muito ruim, condições infraestruturais fracas, mas tem escola hoje em dia para todo mundo”.

“Se a gente pegar da metade dos anos 90 para cá –e eu boto nessa conta Fernando Henrique, Lula e Dilma–, tem um crescendo de oferta de ensino fundamental e médio. Depois, tem todos aqueles mecanismos de financiamento do ensino superior, política de cotas. Isso está mudando a face da universidade e também está mudando a face da produção letrada brasileira”.

Lembrando dos saraus de poesia das periferias e do slam, ele ressalta:

“Não estava previsto que pessoas de escolaridade irregular ou muito recente ou incompleta tivessem tanto apreço pela poesia. Nem estava previsto que a literatura recebesse essa energia toda da oralidade de novo. Literatura parecia coisa de livro, texto escrito impresso entre duas capas. Era isso. A literatura não é mais aquela. O livro deixou de ter aquela aura de ser só de gente lá de cima, muito longe, só de brancos. Isso eu acho uma coisa auspiciosa para nosso país”.

“Nós estamos vivendo um momento muito horrível, barbaridades de todo o tipo. Esse governo federal assassino, de curto, médio e longo prazo. Tem coisas que esse governo está fazendo que nós vamos demorar muito para desfazer. Estamos vivendo essa crise climática que se expressa de maneira catastrófica, como lá em Petrópolis. Temos muitos motivos para ficar tristes e até desesperados. Mas, intelectualmente a gente está vivendo um momento muito bacana. O mundo está muito interessante, tem muita coisa nova acontecendo que nos está obrigando a rever coisas a reler a história, a história do modernismo, do Brasil, a história dos povos, do Atlântico Sul, da América. Tem muita coisa para acontecer e nós temos um país para recompor. Temos que botar esse país de novo nos trilhos”.

ENERGIA CRIATIVA, TROPICÁLIA E SOFT POWER

A Semana de 1922 é tema de um próximo livro de Fischer, que tem polemizado sobre a história do movimento. Ele conta:

“Preparei um livro, que deve sair agora antes do meio do ano, em que tentei acompanhar uma parte substantiva da história da consagração do modernismo paulista. É preciso separar, analiticamente, a Semana propriamente dita, que aconteceu lá em fevereiro de 1922, a obra dos escritores que de alguma maneira estavam ligados à Semana –a obra literária ou pictórica, que é uma segunda coisa, que se estende no tempo por décadas –, e uma terceira coisa é uma consagração crítica que chega até o nível da pedagogia do ensino da literatura no Brasil. Olhando de agora, muita gente comprime tudo isso numa coisa só, e aí atribui à Semana méritos que ela não tem”.

Ele segue:

“A Semana foi um evento importante, olhando de agora para lá, mas, enfim, é como qualquer história, é sempre o presente que mobiliza o passado e que interpreta o passado. Ficou consagrada uma visão que universalizou uma certa ideia de modernismo como sendo o horizonte único e último da produção literária brasileira”.

Analisando o contexto do movimento, ele afirma:

“Aqui no Rio Grande do Sul, tinha uma geração muito interessante de modernistas. A editora Globo, que começa lá por 1925, 1926, publica os novos aqui do Rio Grande do Sul. Então tem um tal de tentar achar uma linguagem nova para falar de temas antigos, recusar o bairrismo, tem narrativa urbana. Enfim, tinha uma vida intelectual muito intensa”.

“Era uma coisa que acontecia com uma escala muito apreciável no Rio de Janeiro, que era uma cidade com vida universitária. Mas acontecia também no Recife, em que há toda uma geração de escritores, uma penca de gente. Em Fortaleza, tinha a Padaria Espiritual, que foi uma lindíssima brincadeira de uns camaradas lá no ano de 1890, que tinham irreverência, criatividade”.

“Só não tinham, talvez comparando com os modernistas de São Paulo, eles não tinham um projeto inteiro para o país. Isso, sim, os modernistas de São Paulo têm, e isso é parte do pacote. As ideias modernistas de reinterpretar o Brasil, essas ideias vão ser reaproveitadas e potencializadas com a criação da USP, em 1934, que é a grande universidade, a maior universidade brasileira, muito bem financiada, muito mais bem financiada do que as universidades federais em geral. E aí então essas ideias vão passar a compor esse lastro –hoje em dia se usa uma expressão muito boa, que é soft power–, o soft power paulista, da hegemonia da indústria de São Paulo, que até pouco tempo atrás era quarenta por cento do PIB brasileiro. Essa ascensão econômica consolidada foi acompanhada pelo soft power da USP e, dentro desse soft power, o modernismo exerce um papel muito importante”.

Sobre o legado modernista, diz Fischer:

“As ideias do modernismo paulista, especialmente as do Oswald de Andrade, entraram na sala da classe média pela televisão, com os festivais de música, com a tropicália. Aquilo ali é que nos apresentou a ideia de vanguarda. Naquele momento, quase 50 anos depois da semana, uma parte desse legado modernista é reabilitado e tem muito a declarar sobre o mundo. A energia criativa desses caras, particularmente do Oswald, realmente é combustível para uma parte dessa explosão da tropicália. De forma sintética, o Mário de Andrade é que dá a forma do pensamento paulista para dentro da USP, e o Oswald é que dá a forma do pensamento para a criação artística. Hoje, na celebração do centenário, o Mário é uma figura totêmica. Foi gestor cultural, pesquisador. Mário é um pesquisador absolutamente essencial na história brasileira, pesquisador da cultura popular. Mas a energia criativa está muito mais no Oswald”.