O cantor, compositor, cineasta, pintor, homem do povo, brasileiro de raça e de combate SÉRGIO RICARDO morreu na manhã desta quinta-feira, 23 de julho, no Rio de Janeiro. Ele contraiu covid em abril passado, conseguiu se recuperar daquela doença, mas seu estado geral exigiu que permanecesse hospitalizado. Tinha 88 anos.

TUTAMÉIA faz aqui sua homenagem a esse João tão querido ao mesmo tempo em que abraça suas filhas e filho, também parceiros na arte, parentes, amigos, todo o povo brasileiro que hoje sofre essa perda.

Vai com ele um pedaço de nós, que tanto apreciamos sua arte, comprometida acima de tudo com o Brasil, com a defesa intransigente da democracia e da luta pela liberdade, dos direitos do povo espezinhado, da gente das favelas, com quem ele convivia com carinho e combatividade –morava há muitos anos no Vidigal, inspiração para várias de suas obras.

A gente esteve fisicamente mais próximo dele nos últimos anos, nesta última década, mas lembramos com emoção do tempo de luta contra a ditadura em que ele fez de sua canção espada. É inesquecível a lembrança dele dedilhando o Hino Nacional ao violão, no auditório da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, para uma plateia de jovens que, no inicio dos anos 1970, davam seus primeiros passos na militância em defesa do povo e do Brasil.

Sua obra é gigantesca e heroica, cada canção um grito de combate e de esperança, mas é preciso destacar aqui “Zelão”, “Perseguição” e o filme “A Noite do Espantalho”, sem esquecer “Calabouço”.

Lançou no ano passado o livro de poesias “Canção Calada”, onde está publicada a seguinte pérola:
GRITO IPIRANGA

“Ouviram um grito Ipiranga

Augusto da paz

Às plácidas margens risonhas

No florão da América

Heroico o brado retumbante

Resplandece límpido

Em raios fúlgidos

 Ao som desse mar e à luz

Deste céu profundo

Vívido

Gigante pendor da igualdade

Tua nobre presença

Pairando sobre todos os momentos

De festa e de dor

És belo, és forte, gentil

Ao raiar nossas vidas

Entre outras mil

Filhos deste solo, em teu seio,

Oh, liberdade”

SÉRGIO RICARDO foi um dos primeiros entrevistados de TUTAMÉIA. Nos deu a honra e a alegria de vir a nossa casa, com suas filhas. Aqui conversamos bastante, ele nos contou sobre a origem de algumas de suas obras, falou de sua trajetória, comentou os rumos políticos do Brasil.

A entrevista foi publicada em primeiro de fevereiro de 2018, e agora a reprisamos em homenagem a esse grande brasileiro. Sérgio Ricardo, presente, agora e sempre!

BRASIL PRECISA DE UMA REVOLUÇÃO CULTURAL, DIZ SÉRGIO RICARDO

por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena

Antonio Conselheiro ameaçou, alertou, advertiu:

“O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão.”

A profecia mítica virou grito de guerra de um Corisco moribundo, nas cenas finais de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que garantia: “Mais fortes são os poderes do povo!”

Era de Sérgio Ricardo a voz de “Perseguição”, dele era a composição, a trilha toda do filme de Glauber Rocha, emblema maior do Cinema Novo.

Ele também cineasta, Sérgio Ricardo, é o pioneiro, “pai” da música de protesto no Brasil, que tem no seu nascedouro a composição “Zelão”, que é um pé na porta da Bossa Nova e traz para os círculos intelectuais da zona sua carioca as temáticas populares, a voz do morro.

Esse anseio do compositor faz com que ele, ao se separar da mãe de suas filhas, na década de 1970, abandone também a vida na planície praieira: “Eu vou pro morro!”, disse ele a si mesmo, e foi morar na favela do Vidigal, onde vive até hoje.

Essas são algumas das coloridas histórias que Sérgio Ricardo contou para TUTAMÉIA durante entrevista realizada em dezembro passado e que acaba de ir ao ar.

Paladino da música brasileira de raiz, ele falou de seu desencanto com a situação atual da cultura, da economia, da política brasileira. Resume assim o entreguismo que vê: “Não sei o que é pior, se a ditadura militar ou a ditadura americana, do capitalismo”.

Espera e propõe reação: “Boca no trombone, só, não resolve nada. O que resolve é pegar no machado e quebrar a árvore”.

Ele vai fazendo sua parte, com música, pintura, poesia, a sua arte. Na entrevista, lembramos de uma quadrinha em que resume assim a dicotomia brasileira:

“A diferença entre os dois

é semântica e de raiz

Lula INTEGRA a nação

Temer ENTREGA o país.”

Sérgio Ricardo publicara o poema dias antes da entrevista com TUTAMÉIA, quando reafirmou sua opinião sobre Lula: “Ele veio com espírito de transformação. Foi o maior presidente que o Brasil já teve.”

Ter opiniões políticas, participar da política e da resistência democrática, tudo isso faz parte da vida do compositor, que continua ativo e produtivo aos 85 anos: “Estou no meu melhor momento como criador”, disse ele, que acaba de lançar no festival de cinema de Tiradentes seu filme “Bandeira de Retalhos”.

O longa é baseado em um episódio vivido por Sérgio Ricardo na favela do Vidigal, no período da ditadura militar, quando príncipes da especulação imobiliária tentaram botar abaixo os barracos dos moradores, num processo de remoção com base na força bruta.

A história foi recontada na entrevista ao TUTAMÉIA, assim como diversos outros episódios da carreira de Sérgio Ricardo, que se sente sentir um “estrangeiro” no seu país, por causa de todo o processo de destruição da brasilidade.

Sua compreensão política, contou ele para nós, foi construída pela própria vivência e pelas conversas que teve com outros artistas, companheiros de jornada: “João Gilberto foi quem me falou de Marx pela primeira vez”, revelou, dizendo que o Brasil precisa de uma “revolução cultural”.

Inquieto, fumando ao longo de todo o tempo de nossa conversa, Sérgio Ricardo é todo vitalidade: “Estou inteiramente voltado para a criação”, disse ele, que finaliza um livro de poemas sem deixar de sonhar com seu desejo maior: levar ao cinema “Estória de João-Joana”, parceria dele com Carlos Drummond de Andrade –trata-se do único cordel escrito pelo poeta.

Fazer cinema, porém, é difícil e complicado, exige muito dinheiro, como voltou a constatar ao longo da produção de “Bandeira de Retalhos”, feito na base de parcerias.

Enquanto o sonho não vem, ele segue na realidade, pintando, escrevendo, compondo e cantando, rodando o Brasil com o show em que se apresenta com os filhos Adriana, Marina e João. E, agora, faz a divulgação de “Bandeira de Retalhos”, em que a canção “Vidigal” quase repete a frase de “Perseguição”:

“Não se brinca com o poder que o poder do povo é bem maior!”

Que assim seja.