“Para mim, era difícil, porque eu achava que só eu de mulher, no mundo todo, jogava futebol. Lá na Vila Alpina, era mesmo: só eu no meio dos meninos. Minha família ficava pressionando para eu não jogar, às vezes eu apanhava, meu irmão era meio casca grossa, mas eu persisti.”

Roseli de Belo persistiu e conquistou: do começo no Juventus, de São Paulo, passou ao Radar, do Rio, jogou nas ligas do Japão e dos Estados Unidos, disputou mundiais e participou de três olimpíadas –tem a prata conquistada em Atenas-2004.

Ponta-esquerda que guarda no currículo gols históricos, Roseli falou ao TUTAMÉIA sobre a abertura de caminhos do futebol feminino: ela foi uma das chamadas na primeira convocação oficial de uma seleção de mulheres brasileiras para participar de uma Copa do Mundo (clique no vídeo no alta desta página).

Foi lá nos idos de 1988, há trinta anos –data “redonda” que inspirou o Sesc a fazer uma homenagem ao futebol, criando em São Paulo o evento 60-30, que celebra o desbravar feminino e a primeira conquista da seleção masculina de futebol, há sessenta anos, na Suécia.

Às restrições impostas pela família para Roseli jogar futebol, somavam-se as dificuldades financeiras de quem mora na periferia. Então com doze anos, ela se juntava com os meninos  para dar um jeito de jogar futebol, até organizando campeonatos no bairro.

“A gente vendia latinha, vendia garrafa para comprar bola, comprar lanche, refrigerante, para fazer os campeonatos”, lembra ela. Para as competições, diz, “A gente pegava a rua São Carlos, que era a minha, pegava a rua Iguará, e assim vai. O meu time sempre ganhava”.

Descobriu que não era a única mulher a jogar futebol: uma vizinha que atuava na equipe do Juventus, na Mooca, levou Roseli para um teste.

“Eu fui e treinei, acho que foi um dia. O treinador me mandou dar trinta voltas no campo. Dei as trinta voltas, aí teve coletivo e tudo. Eu arrebentei no coletivo, fui embora e não voltei mais.”

Tinha agradado tanto, porém, que o treinador acabou indo até a casa da garota, pedir permissão à mãe de Roseli para que ela jogasse no Juventus.

“Eu falei: Eu fico, mas as trinta voltas eu não dou mais. Não tem condições.”

TREMENDO EM COPACABANA

Foi cavando oportunidades, atraiu a atenção de Eurico Lira, então treinador do Radar, do Rio de Janeiro, melhor time da época. O convite provocou irritação no técnico do Juventus e confusão na família: a mãe, dona Maria Aparecida, não queria nem ouvir falar, proibiu a aventura na hora.

“Mesmos assim, eu resolvi ir. Eu estava com quinze anos. Consegui um dinheiro, comprei a passagem e fui assim mesmo para o Rio de Janeiro.”

Saiu da casa às escondidas, aproveitando um dia que a mãe havia saído para trabalhar. No Rio, se deu bem, o time era bom –“um dos melhores em que joguei”, lembra.

Um dia, a tranquilidade foi quebrada: “Eu estava lá, saindo da praia, em Copacabana, em frente ao apartamento onde a gente morava, quando quem eu vejo? Minha mãe! Comecei a tremer na hora, achei que ela fosse me bater”.

Nada. Conversaram as duas, dona Cida falou com o treinador, as coisas se resolveram. “Conheci as grandes jogadoras, como a Pelezinha e a Fanta, que me deram uma força imensa para eu ficar no Rio de Janeiro. Me destaquei, junto com elas, porque sozinha eu não faço nada.”

Tanto se destacou que foi uma das convocadas, em 1988, para a seleção feminina que representou o Brasil no primeiro Mundial organizado pela Fifa –um torneio-teste na China para a largada oficial, anos mais tarde, das competições femininas sacramentadas pela entidade que coordena o futebol mundial.

“Peguei o telefone, liguei para minha mãe: “Mãe, tô indo para fora do país”. Ela ficou meio assim, mas, lógico, aprovou. Ela teve de assinar a autorização, eu estava com 16 anos. Ela deixou, assinou, foi para o Rio de Janeiro de novo. Mesmo não sabendo nem ler nem escrever, achou onde eu morava.”

Com a convocação, diz, “A posição da família mudou da água para o vinho. Minha família começou a me ajudar, a me apoiar, aí que eu comecei a gostar ainda mais do futebol. Quando você tem o apoio de sua família, você vence na vida.”

FALTA DE APOIO

Apoio da família e luta: “Nessa época, era difícil para a gente. O Eurico fez um monte de camisa do Radar, com o nosso nome atrás, para a gente vender e conseguir dinheiro para poder pagar o nosso hotel, para a gente ter um hotel. Nos jogos, a gente saía para vender camisas. Se não a gente não consegui ficar em hotel. A gente não tinha apoio de ninguém”.

Nem mesmo da cartolagem nacional, afirma ela: “A CBF não dá apoio ao futebol feminino. A gente depende da CBF para que os clubes também invistam no futebol feminino. Isso a gente nunca teve, nunca mesmo”.

Apesar dos perrengues, lá se foi a seleção para a China. Além de Roseli, foram convocadas Lica, Elane, Sandra, Marisa, Fia, Russa, Michael Jackson, Pelezinha, Fanta, Simone, Suzana Cavalheiro, Márcia Honório, Flordelis, Sissi, Suzy, Lúcia e Cebola.

Todas jovens, explorando as novidades do Oriente: “A gente chegava num restaurante para comer, tinha um aquário imenso, alguém falava; – Pô, vamos comer cobra? Aí ficava difícil.”

Cebola, que, como Roseli, foi escolhida para a seleção da Copa, protagonizou episódio divertido:

“Um dia, a gente estava lá, ela gostou de um sorvete, queria trazer o sorvete para o Brasil. Nós brincamos com ela: “Nossa!, Cebola, como pode!”. Ela tanto que gostou, até chorou, era uma menina.”

Em campo, era hora de seriedade. O Brasil saiu campeão de seu grupo, que tinha ninguém menos que a Noruega, que acabou sendo a campeã do evento, mais Austrália e Tailândia.

Na fase seguinte, venceu a Holanda. Nas semifinais, parou na Noruega. Com a derrota, disputou o terceiro lugar contra as donas da casa e, depois de um empate sofrido, derrotou a China nos pênaltis.

VITÓRIA SOBRE OS EUA

Na primeira Copa do Mundo oficial, de verdade (a da China havia sido um torneio com seleções convidadas), Roseli voltou a se destacar. Marcou o primeiro gol do Brasil em Copas, na vitória sobre o Japão em 1991.

Quatro anos depois na Suécia, acabou com a festa das anfitriãs marcando o único gol do Brasil contra as suecas.

Exibições internacionais que serviram de vitrine para Roseli, que expandiu sua carreira para o mundo: atual durante quase três anos no Japão, no Takaruzuka Bunnys, e mais dois anos dos Estados Unidos, no Washington Freedom.

A lembrança das alegrias no exterior é marcada por uma pitada de dor por causa das condições enfrentadas aqui no país:
“Se você quer ter uma diferença de vida, você tem de jogar fora, porque aqui é complicado, a gente não tem apoio. Nessa de estar jogando fora, consegui organizar a vida da minha família, dei uma casa para minha mãe, comprei minha casa. Mas jogando fora, porque aqui é um pouquinho difícil.”

Dificuldades provocadas pela falta de recursos para o futebol feminino, em que a discriminação chega até mesmo ao nível da seleção, como lembra Roseli.

“O tratamento das seleções era totalmente diferente. A gente ia pedir uma chuteira, não tinha, a gente é que tinha de levar a nossa. Veja o masculino. No masculino, cada um tem cinco, seis chuteiras, e a gente, nada. Uma camisa que a gente queria dar ou levar de lembrança para os nossos parentes, não podia, tinha de deixar lá. E no masculino é totalmente diferente. Os jogadores da seleção masculina, a gente treinando, até eles sabiam de nossa dificuldade, eles levaram um saco de chuteira para a gente.”

Apesar dos problemas, a seleção avançava. Em 1997, conquistou sua primeira vitória contra os Estados Unidos. Gol de quem? Roseli, que assim contou a história para o TUTAMÉIA:

“Quando a bola entrou no gol, foi só felicidade. Eu pensei comigo: eu sabia que a gente um dia ia ganhar, e eu iria fazer esse gol. A cabeça era essa.

“O jogo foi no Canindé. Tava acabando já, o jogo, era já uns 38 do segundo tempo.

“Saí, como sempre, driblei, driblei, driblei, a zagueira veio, dei um corte na zagueira, chutei e fiz o gol. A bola entrou! Ninguém acreditou! Elas vieram me abraçar, eu falei, ué, foi gol? Foi gol! Aí foi só emoção.

“Ganhamos o jogo, foi só alegria, que até hoje eu não acredito, não acredito! Para a ficha cair, demorou bastante.

“Fui para casa… Eu tinha falado que a família era difícil de dar apoio. Naquele dia, cheguei em casa, foi só alegria! Tinha comida, janta, tudo certinho, ali para mim…”

Recorte de jornal com foto que Roseli de Belo, à direita do presidente Lula, guarda até hoje

ENCONTRO COM LULA

Com a experiência, Roseli e as atletas da seleção e do futebol feminino em geral passaram a querer mais respeito, mais atenção. Reivindicavam o pagamento que lhes era devido, queriam melhorar as condições de todas as jogadoras.

Foi assim que, já de volta ao Brasil e jogando pelo Saad, de São Caetano, Roseli conheceu o presidente Lula:

“Nós alugamos uma van, saímos de Águas de Lindóia, um grupo de meninas do time do Saad, e fomos para Brasília para tentar conversar com o Lula. Não conseguimos no primeiro dia, dormimos na van, e no outro dia ele nos recebeu. Nós fomos reivindicar um bolsa atleta para a gente, para todo o Brasil, para as meninas que jogam, futebol.

“Ele nos recebeu com o maior carinho, tirou foto com a gente, e conseguimos o bolsa atleta. Pelo jeito, acho que até hoje temos o bolsa atleta, por causa do governo Lula, que ajudou, e muito, o futebol feminino.

“Não por ele ser corintiano, porque ele ama o futebol feminina. Ele e a presidente Dilma foram excelentes. Até hoje tenho a carteirinha do bolsa atleta.”

Aos 48 anos, Roseli atua hoje na área de esportes da Prefeitura de Osasco, trabalhando com crianças e adolescentes. E não deixa de bater uma bolinha:

“Jogo com os meninos lá, na quadra. E como jogo! Dou aula de quarta e sexta, de futsal, lá o bicho pega!”, fala, abrindo um sorriso.

Que se fecha quando fala de política. Depois de ela avaliar o futebol de sua época e de hoje, celebrar o avanço do número de mulheres praticando esporte, perguntamos a Roseli como via a situação do Brasil de hoje:

“Nem preciso falar para você do que eu estou vendo, porque você está vendo a mesma coisa. O Brasil está difícil. Eles falam que o Lula é isso, o Lula é aquilo, o Lula rouba. Rouba o quê? E esse roubo que está aí, agora, que tá tendo? Na cara deles, eles não veem isso? Acho que também a Globo só quer colocar ali o que eles querem.”

“Ah, o Lula é isso, o Lula é aquilo. Para a gente, isso não importa. Ele foi um presidente muito, muito bom. Ele preso, isso só está nos prejudicando, em tudo, em tudo… O Brasil está um caos. E ele preso? Não tem jeito: vamos soltar o Lula, sim!”