“A ditadura nem me deixou chorar a morte de meu irmão, do meu pai e do meu marido. Eu nunca pude chorar porque não podia demonstrar. A primeira vez que chorei foi quando teve o translado [dos restos mortais] da Maria Lucia Petit. Em 1991, nós, os familiares, estivemos no Araguaia quando se descobriram as ossadas. E só em 1996, quando a ossada foi identificada, que eu vi eu vi aquela caixinha pequeninha com os ossos dela, foi a primeira vez que eu chorei. A ditadura também me deve isso. Eu não pude chorar a morte do meu pai, do meu marido e do meu irmão. Quando minha mãe morreu, eu enterrei os três com ela, na minha cabeça.”
Palavras da professora Victória Grabois, que teve o pai, Maurício Grabois, o irmão, André Grabois, e o marido, Gilberto Olímpio, assassinados pela ditadura no Araguaia. Militante do Partido Comunista do Brasil na época do golpe militar, ela relata ao TUTAMÉIA como cerca de 300 estudantes foram protegidos de um ataque do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) no dia primeiro de abril de 1964.
“Eu era aluna na Faculdade Nacional de Filosofia, aluna de ciências sociais. Naquele dia, eu tinha de fazer uma prova. Fui a pé, não tinha ônibus. Chegando lá, estava todo mundo em polvorosa porque tinha vindo uma ordem do comitê central do PCB que todo mundo fosse para a Faculdade Nacional de Direito, na praça da República, em frente à Central do Brasil. Ficamos lá, nos guiando pela rádio da Legalidade, do Brizola. Aí começou a vir gente de todas as faculdades da Universidade do Brasil, eram cerca de 300 estudantes. Quando foi três horas [da tarde], a rádio da Legalidade cessou, saiu do ar. Passada mais ou menos uma meia hora, passaram a jogar bomba de gás lacrimogênio lá dentro. Aí foi um desespero. A faculdade tem três andares, eles jogavam no primeiro, e nós subimos para o terceiro andar. Foi um trauma.”
Ela segue, nesta entrevista realizada no dia 14 de março de 2024: “Isso era tipo três e meia da tarde. Pelas cinco, batem na porta, uma porta de jacarandá grossíssima. Alguém perguntou quem era, e a resposta: “Aqui é o capitão Ivan Cavalcanti Proença, abram a porta que eu vim aqui para ajudar vocês”. Quando abriram a porta, vimos uma unidade do Exército, todos vestidos como se fossem para a guerra, com aquele capacete de guerra, com metralhadora nas mãos. E então ele fala: “Estou aqui para proteger vocês. Eu vim aqui para colocar fogo, mas vocês vão embora, eu garanto a segurança de vocês’”
Os estudantes se safaram, e no dia seguinte Victória entrou na clandestinidade, em que viveu durante 16 anos. “Meu filho teve de trocar de nome quando a guerrilha começou. Era Igor, passou a se chamar Jorge”.
Ela conta ao TUTAMÉIA como ficou sabendo das mortes do pai, do marido e do irmão e de como procurou evitar que a mãe soubesse. “Todas as mães eram meio enganadas. Você passa a acreditar que eles estão desaparecidos para poder sobreviver. Se não, não sobrevive.”
Mas a história fica, a memória fica, assim como a dor -no país e nas pessoas: “A ditadura arrasou o estado brasileiro, acabou com a educação, a ciência. As sequelas da ditadura estão nos meus filhos e nos meus netos. Isso fica. O meu filho mais novo sempre diz: ´Nessa casa aqui, as pessoas só falam de desaparecidos políticos, não falam de outra coisa´”.
É um tema que precisa ser tratado, afirma Victória Grabois, que integra a diretoria colegiada do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ:
“O Brasil precisa conhecer essas pessoas que deram a vida para se dedicar ao povo brasileiro. Isso precisa ser contado. A história do Brasil precisa ser contada toda. E a gente tem de continuar lutando por um Brasil digno, um Brasil que amenize as desigualdades sociais, em que todas as crianças possam estar na escola, que todas as pessoas possam ser atendidas nos hospitais. Era para isso que os guerrilheiros do Araguaia lutavam. Eles lutavam por um outro Brasil. A gente tem de honrar esses heróis do povo brasileiro. Enquanto eu viver, enquanto eu tiver forças, eu continuarei lutando. Que a gente estude esse período, que a gente discuta esse período e que nunca mais aconteça.”
O depoimento integra uma série de entrevistas sobre o golpe militar de 1964, que está completando sessenta anos. Com o mote “O que eu vi no dia do golpe”, TUTAMÉIA publica neste mês de março mais de duas dezenas de vídeos com personagens que vivenciaram aquele momento, como Almino Affonso, João Vicente Goulart, Anita Prestes, Frei Betto, Janio de FReitas, Roberto Requião, Djalma Bom, Luiz Felipe de Alencastro, Margarida Genevois, Ladislau Dowbor, José Genoíno, Roberto Amaral, Guilherme Estrella, Sérgio Ferro e Rose Nogueira.
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