“Este é um momento terrível que a gente está vivendo no Brasil, sem precedentes. Bolsonaro usou o vírus como uma arma biológica no projeto dele –na minha opinião, o principal projeto de poder do Bolsonaro é abrir a Amazônia para a exploração predatória, gado, soja, mineração. Isso já estava claro desde a campanha política. Quando chega a covid, ele tem esse auxílio inesperado, e ele deixa os territórios indígenas, as unidades de conservação onde vivem a população ribeirinha e os quilombos abertos para a entrado do vírus. Chega ao ponto de vetar água potável para os indígenas, de vetar leitos emergenciais para os indígenas, de vetar campanhas de informação sobre a covid 19 nas línguas indígenas. Isso é o que tem sido denunciado pelos povos indígenas, inclusive junto ao Tribunal Penal Internacional, como genocídio.”

Palavras da jornalista e escritora Eliane Brum, em entrevista ao TUTAMÉIA pouco antes do lançamento de seu novo livro, “Banzeiro òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo”. Ela conta desse novo trabalho, aponta os crimes que estão sendo cometidos na região, comenta a política governista e alerta sobre o superaquecimento global: “A gente está numa encruzilhada como espécie” (clique no vídeo para acompanhar a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Acompanhe a seguir algumas das reflexões de Brum, que fala desde Altamira, no Pará, onde vive desde 2017.

PROJETO DE BOSONARO NA AMAZÔNIA

O vírus foi usado aqui na Amazônia e em outros ecossistemas como arma biológica para exterminar a resistência, porque nas terras indígenas e nas unidades de conservação é onde tem mais floresta… Só existe floresta, a gente pode dizer, porque existem os povos da floresta, que protegem a floresta, que vivem há milênios com a floresta. E essa era a principal resistência.

Por um lado, o Bolsonaro estimulou a invasão das terras indígenas e das unidades de conservação; por outro, fragilizou a fiscalização, militarizou órgãos como o Ibama e, no Congresso, avança a legalização daquilo que era crime, além de arrebentar com a legislação ambiental que foi construída nas últimas décadas

Aí chega a covid e é usada como arma. Muitos anciões, que eram as lideranças de seus povos, que eram também aqueles que era guardiões do conhecimento e da própria língua –algumas línguas morreram nessa pandemia–, eles foram destruídos totalmente, porque eram os mais velhos. E, com eles, a resistência; a resistência foi minada.

INCÊNDIOS E INVASÕES

Por outro lado, se avançou enormemente na invasão de terras públicas. Houve um estímulo enorme –estímulo à grilagem é a própria história do Brasil, a apropriação por mãos privadas de terras públicas é a história do país como nação. Agora, o que acontece com Bolsonaro é num outro nível, que é o estímulo declarado, com a tentativa de legalização daquilo que é crime. Os grileiros, que são ladrões de terras públicas em grande quantidade, vão sendo transformados em fazendeiros, em proprietários rurais.

Aqui tem havido um grande número de incêndios. A primeira coisa é botar fogo nas casas dos camponeses. Colocar fogo nas casas de lideranças indígenas, e avançar.

FUGA NO FIM DE ANO

Estamos em outubro e, já neste momento, começa um movimento de saída, em várias partes da Amazônia, e também aqui perto, em Anapu, onde foi assassinada a irmã Dorothy Stang em 2005, e hoje a situação é muito pior, muito mais perigosa. As lideranças começam a sair, para se esconder, porque quando chega novembro a gente já começa a sentir uma diminuição da atividade das poucas instituições que ainda funcionam. E, quando chega dezembro, o Natal, elas entram em recesso. As organizações não governamentais, essas que, por motivos óbvios, estão sendo tão criminalizadas pelo bolsonarismo, elas também entram em férias coletivas. Então o pouco de proteção que se tem desaparece no final do ano.

Enquanto as pessoas e a publicidade veem o Natal e o Ano Novo como um momento de reunir famílias, de as pessoas viajarem para ficarem juntas, para essas lideranças é o contrário: é o momento de escapar da forma que for possível para não ser assassinado.

ERASMO TEÓFILO

Hoje talvez uma das pessoas mais interessantes e mais ameaçadas no Brasil seja uma liderança chamada Erasmo Teófilo.

O Erasmo teve paralisia infantil, ele se locomove, quando dá, numa cadeira de rodas, mas na maior parte do tempo em uma cadeira de plástico, porque é muito difícil andar de cadeira de rodas na Amazônia. Ele é a liderança camponesa mais importante em Anapu e, neste ano, ele pode ficar em Anapu talvez três meses, entre ter de sair, voltar e sair.

Um pouco antes de sete de setembro, como estava anunciado o golpe de Bolsonaro, ele teve de sair de novo com a família, quatro crianças, sendo um recém-nascido. O Eduardo filho dele nasceu em um esconderijo, no meio da epidemia de covid, voltou, conheceu os avós e, com menos de cinco meses de idade, ele já estava em seu segundo esconderijo. Esse é o Brasil daqui.

BANZEIRO ÒKÒTÓ

O livro é a travessia que eu fiz até hoje.

Eu cubro as Amazônias desde 1998, minha primeira reportagem foi sobre a Transamazônica. E aí eu segui cobrindo a Amazônia, diferentes partes dela.

Em agosto de 2017 eu me mudei para Altamira por entender que, neste momento em que a gente vive, no momento em que parte da espécie humana se converteu em uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta, que a minoria dominante de humanos está causando a sexta extinção em massa das espécies, é fundamental compreender que é preciso confrontar os conceitos do que é centro e do que é periferia, é fundamental entender que, neste momento, neste desafio, os suportes naturais de vida, como os oceanos, como as florestas tropicais são os verdadeiros centros de nosso mundo. É preciso fazer esse deslocamento.

Decidi me mudar de São Paulo, que é a maior cidade do Braisl, que é o centro no sentido convencional do que se chama centro, mainstream, para um dos centros do mundo nessa nova perspectiva, que é a que eu defendo. Eu me mudei por coerência e porque eu queria inverter o olhar desde onde eu olho o país, eu queria contar a Amazônia desde a Amazônia, queria ver o planeta desde a Amazônia.

AMAZÔNIA CENTRO DO MUNDO

Amazônia Centro do Mundo está no título do meu livro, mas é um movimento que começou no final de 2019.

Houve dois eventos aqui na Amazônia (saiba mais CLICANDO AQUI; e há mais informações AQUI). Mas o movimento continua em vários lugares, porque ele é uma ideia. Tem os encontros, coisas acontecem, mas ele é uma ideia, a ideia do deslocamento dos centros, e uma ideia de aliança entre os diferentes centros –não só enclaves da natureza, suportes de vida como a Amazônia, mas também entendo aquilo que se chama e que sempre foi tratado como periferia, e as periferias urbanas. Acredito muito na aliança entre essas que são chamadas periferias, as florestas e os povos das florestas e os povos de outros ecossistemas e os povos daquelas que são chamadas de periferias em São Paulo, no Rio e em outras cidades.

RESISTÊNCIA

A gente enfrenta lutando, a gente enfrenta resistindo. E acho que todas as pessoas são capazes de encontrar sua forma de resistir, junto com os outros. A gente tem de ser capaz de criar o comum, e isso a gente só faz junto com os outros, a gente só faz criando comunidades. Criar comunidades hoje é uma forma de resistência.

BOLSONARO E O SUPERAQUECIMENTO GLOBAL

A gente está vivendo uma emergência climática, cujos sinais estão em toda a parte, e que só vai se acentuar. A gente está numa encruzilhada como espécie. Sem a Amazônia, não tem tem como enfrentar esse aquecimento global. Não é uma coisa longe. Está acontecendo agora.

É preciso impedir que a Amazônia chegue ao ponto de não retorno –e isso vai acontecer nos próximos anos. Sem a maior floresta tropical do mundo, a grande reguladora do clima, é muito difícil enfrentar o superaquecimentro global.

Então é preciso se conectar aos povos da floresta, impedir que os projetos que estão tramitando no Congresso aconteçam, fazer pressão, lutar por isso, resistir por isso, impedir a aprovação do marco temporal.

Não é pelos povos indígenas, não é por compaixão pelos povos da floresta, é pela própria sobrevivência.

A gente não está falando só de uma crise que está encarnada por Bolsonaro, a gente está enfrentando uma crise que diz respeito à nossa própria extinção.

Bolsonaro e seu grupo estão aceleradamente levando a Amazônia ao ponto de não retorno. Se a gente não se engajar numa luta pela Amazônia de uma forma muito presente, muito profunda, muito concreta, a nossa vida nesse planeta vai ficar muito, muito mais difícil. E não é daqui a cem anos, não: já está acontecendo.

O meu livro, o meu trabalho, assim o trabalho de tantas pessoas, assim como tantas vozes que estão se levantando é para que as pessoas consigam entender que este é um momento completamente diferente na história da trajetória da nossa espécie neste planeta. Não é uma questão só de tirar, de enfrentar um genocida no poder –o que já pé uma enormidade–, a gente precisa a floresta em pé.