“Estou apavorada. A prisão preventiva virou uma espécie de arma à disposição dos juízes para calar. Isso é ditadura, desculpe. A ditadura está implantada de uma forma bem perversa. Tenho medo por todos nós”.
O alerta é da cineasta, encenadora, diretora teatral Daniela Thomas em entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo acima). Ela fala das prisões de Lula, de Preta Ferreira e de outras lideranças da luta por moradia na cidade de São Paulo. “Estão usando das artimanhas possíveis para golpear os movimentos sociais. Isso é muito preocupante”, diz.
Na sua avaliação, o regime neofascista em que estamos vivendo é o mais perverso do que ela leu, escutou ou viveu, “porque ele está usando do sistema democrático. Está transformando a Justiça em ‘justiceirismo’, para fazer prisões, como a do próprio Lula, fazendo prisões ilegais sem cometer ilegalidades facilmente perceptíveis e destruíveis”.
“Lula continua preso mesmo todos sabendo quão artificial, quão fabricada foi essa [condenação], independentemente do Lula. Se o Lula tem que pagar por alguma coisa é outra questão. Mas a questão é ele está ali não porque ele tem que pagar por alguma coisa, mas porque é um golpe judicial. Não foi preciso fechar o Congresso, o STF, ir às armas. No entanto, a ditadura está implantada de uma forma bem perversa. Estou muito assustada. Já tenho uma amiga presa”.
SOU FILHA DE PRESO POLÍTICO E SEI: PRENDER PRETA É INJUSTO E VIL
Daniela Thomas fala da prisão de Preta Ferreira (Janice Ferreira da Silva), liderança do Movimento dos Sem Teto do Centro, presa desde 24 de junho, assim como seu irmão Sidney Ferreira da Silva. Os dois são filhos de Carmem Silva, expoente da luta por moradia na cidade, que também teve sua prisão decretada. Edinalva Franco Pereira e Angélica dos Santos Lima, do Movimento de Moradia para Todos, também foram presas sob acusação de extorsão e participação em grupos criminosos –alegações rechaçadas pelas defesas, que denunciam uma tentativa de perseguição política e criminalização dos movimentos sociais.
“Preta foi atriz num curta meu”, lembra Daniela, rememorando a luta dela e da mãe contadas no filme “Era o Hotel Cambridge” (Eliane Caffé, 2016), documentário sobre o antigo prédio no centro de São Paulo cuja ocupação se transformou em exemplo para os que combatem pelo acesso à moradia. “Cambridge é uma história de sucesso, deu certo, é uma coisa muito bonita”, fala Daniela.
Agora, ambas lideram a Ocupação 9 de Julho, também no centro. Para Daniela, o lugar é “um dos melhores centros culturais de São Paulo, um dos mais importantes, mais ativos, mais poderosos. É um centro de apoio para imigrantes, jovens. Tem cursos, laboratórios, horta. Vivo lá sempre que posso. Adoro elas. Elas fazem um trabalho relevante para o centro da cidade, de apoio, de acolhimento. Não é paternalista, de orfanato. Ali a gente se encontra, tem uma convivência que a cidade partida não permite. Ali se troca, se tem conversa”. E declara:
“Prender a Preta é absolutamente injusto, é vil, é vileza, maldade. Eu sou filha de preso político e sei”.


É INSUPORTÁVEL A IDEIA DE ALGUÉM SER PRESO INJUSTAMENTE
Daniela, 60, fala do tempo da ditadura militar, quando seu pai, o cartunista, escritor e jornalista Ziraldo Alves Pinto, foi preso por três vezes. “A minha infância acabou no dia em que ele foi preso. Foi como se eu tivesse sido expulsa do paraíso. Minha infância era deliciosamente feliz e, de repente, fui jogada num inferno. Tinha 9 anos. Foi muito chocante. Essa ideia de alguém, ilegalmente, injustamente, te tirar de casa, te tirar do convívio de seus amigos, te colocar em condições desumanas para mim é insuportável. Estou muito assustada e apavorada”.
E segue:
“Há muito conluio entre juízes e Ministério Público, como já percebemos. Dentro do Ministério Público há uma coisa muito politizada, há um grupo muito ligado à extrema direita que está manipulando a situação para castigar o movimento social na cidade de São Paulo. A prisão preventiva virou uma espécie de arma à disposição dos juízes para calar. A prisão preventiva é tirar a pessoa de sua liberdade por anos. Isso é ditadura, desculpe. É prender alguém sem julgá-lo, sem direito à defesa. Lembra a Lei se Segurança Nacional [mecanismo jurídico usado pela ditadura militar, pelo qual Ziraldo foi processado]”.

Bete Coelho em “Mãe Coragem” – foto Jennifer Glass/Divulgação

CADELA DO FASCISMO ESTÁ SEMPRE NO CIO
Daniela Thomas fala ao TUTAMÉIA sobre “Mãe Coragem”, peça de Bertolt Brecht que ela dirige, com o protagonismo de Bete Coelho.
“A peça tem uma atualidade assustadora. Foi escrita em 1939, sobre uma guerra do século 17 que durou 30 anos. Era uma reflexão de Brecht sobre a ascensão do nazismo na Alemanha. Ela tem uma atualidade que não quer calar, que é falar sobre a ascensão do fascismo, a guerra como fascínio, a destruição humana, a vileza humana como objeto de fascínio. E de como as pessoas acabam todas envolvidas nessa trama, nessa doença e parece que não tem escapatória nisso. Mesmo em relações mais intimas e calorosas, como é a relação entre mãe e filho, as pessoas acabam sucumbindo também à cadela do fascismo. É como ele chama: a cadela do fascismo está sempre no cio”.
A história dessa montagem em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, vem de longe. Daniela relembra que em conversa com Bete Coelho, em 1991, perguntou qual era o grande sonho da atriz. “Ela falou: ‘Fazer o grito mudo’. O grito mudo é o grande gesto. Ante a morte do filho mais novo, ela [a mãe coragem] não pode revelar a intimidade. Ela está fingindo que não é a mãe dele para poder proteger a ambos. Então ela tem que gritar sem som. É das cenas mais emblemáticas do teatro. Ali [em 1991] fizemos um pacto não falado: se eu pudesse, algum dia, faria esse grito mudo. É uma peça apavorantemente extraordinária, muito forte, um clássico que conversa com a realidade ciclicamente”.


VIVEMOS NUMA IDADE MÉDIA PARALELA
Na entrevista ao TUTAMÉIA, Daniela fala do papel do artista nesses tempos de obscurantismo e de novos projetos. Trata também de seus filmes “Vazante” (2017) e “O Banquete” (2018). Ambos retratam a elite: o primeiro, durante a escravidão; o segundo, nos anos 1990.
“Na origem dos dois filmes está a questão da discrepância de poderes entre homens e mulheres. Pela primeira vez, agora, faz pouco tempo, um, dois anos, eu sinto, de verdade, os homens assustados e um pouco tendo que repensar as frases que falam socialmente. Pela primeira vez, a questão feminista chegou até os homens”.
Sobre a situação mais geral, afirma:
“Estamos vivendo uma espécie de Idade Média paralela. Essa coisa do terraplanismo! É como se o método científico fosse uma crença como qualquer outra. Nasci e fui criada dentro da ditadura. Dentro da minha casa a gente nunca parou de criar. O Collor conseguiu acabar com o cinema. Eles podem fazer isso, mas está complicado. A gente conseguiu um emaranhado de estruturas de apoio à cultura que vai ser difícil de desmontar. Mas eles vão tentar”.
Daniela defende a atuação pública na cultura. “Se o mercado for nossa baliza para a produção de cultura, daqui a pouco não vai ter cultura no Brasil. Em pouco tempo, você vai ter uma série de comédias de quinta categoria e música sertaneja. É isso o que vende. O financiamento estatal existe para a música experimental, o cinema autoral, o teatro que faz Brecht. Para que as pessoas possam ter pensamento crítico, pensarem sobre sua própria condição. Se isso não for financiado, isso morre. Fui formada pelo cinema de autor. Fui formada por isso”.
RESISTIR, CONSTRUIR –E FALAR COM OS TERRAPLANISTAS
A cultura, reforça Daniela, estimula o pensamento crítico e nega o fascismo. “Eles [o governo] querem o autoritarismo militar, patriarcal, o macho com a arma na mão, dominando e decidindo o que é o bom e o que é o ruim para as pessoas. São a síntese do que a cultura luta para extinguir. Parece o cio da cadela do fascismo. É um bicho difícil de conter: esse desejo pela morte, o fascínio pela morte que sempre esteve aí e que, ciclicamente, sai do armário violentamente. E quer calar a boca das mulheres especialmente e das minorias em geral”.
O que fazer?
“Resistir, resistir, resistir. Com toda a força que tiver. A gente não pode simplesmente achar que somos vítimas de algo. A gente tem que tentar entender e tentar construir o futuro. Com menos arrogância e com mais autocritica, observar em torno da gente e tentar convencer os terraplanistas. A gente não pode desistir do terraplanista, porque ele pode ser um filho seu, um amigo, uma tia. A gente precisa descobrir laços. A ciência tem que voltar a ter glamour, carisma. A democracia tem que voltar a ter charme. Resistir, resistir, resistir, mas construir, construir, construir o futuro. Olhando para o lado, não deixando ninguém ficar para trás no fascismo, como se não existisse culpa nenhuma da nossa parte”.