“Para um escritor, o que me pareceu inédito nessa pandemia é que ela revelou uma situação em que a imaginação é uma dor. A imaginação é quase uma impossibilidade”.

Palavras do escritor e jornalista Bernardo Carvalho em entrevista ao TUTAMÉIA. Autor de “Nove Noites”, ele acaba de lançar “O Último Gozo do Mundo”, seu 13º livro. Escrito nesta pandemia, o texto traz elementos da história recente do país. Uma professora de sociologia vê seu mundo se transformar na pandemia e sai em busca de respostas. Vai ao encontro de uma pessoa que alega prever o futuro depois de sequelas da doença.

“Entendi a ligação quase orgânica, inseparável, de memória e imaginação. Na hora em que você perde a memória, você acha que a imaginação vai ficar livre. Não. O que acontece na hora que você perde a memória é que a imaginação se inverte e ela passa a delirar o passado. É como se fosse um pesadelo em um círculo vicioso no qual você fica preso. Eu comecei a imaginar uma situação como se fosse uma alegoria que tem a ver muito com o Brasil, com essa situação presente, não só a pandemia, mas tem a ver com esse governo”, fala Bernardo.

Ele segue: “Comecei a pensar por que é tão necessário para o governo obliterar a memória, fazer você esquecer o passado. Porque justamente na hora em que você esquece o passado, você não consegue imaginar o futuro”.

Nesta entrevista, Bernardo fala sobre a terrível situação do Brasil, conta como é escrever nesse pandemônio e trata da sua atuação como cidadão. (Acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Ele relata que a combinação entre a pandemia e a política no país o levou a ter condições de concentração absoluta e viver a pura dispersão.

“É como se seu corpo e sua mente fossem sendo minados pouco a pouco, sem que você percebesse. Dia a dia você vai perdendo alguma coisa e vai entendendo que vai perdendo alguma coisa e vai se adaptando a esse lugar mais estreito, mais pobre, mais violento. Isso é muito ruim”.

RAIVA E FLAUTISTA DE HAMELIN

Ele continua:

“E a dispersão tem a ver com isso: você não saber que parte de você vai se perder no dia seguinte. Quanto mais você vai perder no dia seguinte. Você está se recuperando do que perdeu naquele dia, mas vai ter mais um pouquinho no dia seguinte que vai sumir. Isso te põe num estado muito ruim, de dispersão, de muita raiva”.

“Eu sou um cara muito raivoso em geral. Mas eu não sei mais lidar com essa raiva, que é uma raiva contida, que pode explodir a qualquer momento. Todo o dia você recebe novas razões para essa raiva”, ressalta.

Para Bernardo, a situação toda trouxe uma forte consciência da solidão e da vulnerabilidade.

“Morro de medo de fazer um pagamento errado, do meu telefone ser clonado. Porque qualquer coisa que sair do lugar é como se eu não tivesse mais a quem recorrer. Como se eu tivesse perdido apoio no mundo, que é mais violento e mais absurdo”, diz.

Ele lembra de participar de manifestações contra o governo, do sentimento de que Bolsonaro seria removido logo.

“Foi ingenuidade. Como a gente vai sendo desiludido, essa desilusão diária. Esse foi o lugar da pandemia no Brasil. Seria natural que ele tivesse caído, que as pessoas fossem presas e punidas. Mas nada acontece. Isso é o mais terrível”, desabafa.

“Me deu uma raiva do país como eu nunca imaginei que pudesse ter. Ando na rua e fico pensando: sei que esse cara é bolsonarista. É raiva do seu par. É uma impotência muito grande, vai acumulando um estado raivoso contra os brasileiros que colocaram a gente nesse lugar”, afirma.

Na avaliação de Bernardo, Bolsonaro é espertíssimo e tem uma inteligência intuitiva. “Ele consegue manipular diversas frentes da sociedade e orquestrar esse negócio de forma que essas pessoas se submeteram a um suicídio coletivo na mão desse cara. Como se fosse aquele flautista de Hamelin levando crianças para o despenhadeiro. E todos vão, empresários, militares. É uma pulsão suicida evidente”.