Para enfrentar a pandemia do coronavírus, a Itália destina cerca de 25 bilhões de euros. Quantia equivalente Jeff Bezos, o dono da Amazon, entregou para MacKenzie, sua ex-mulher, para acertar o divórcio. Quem faz a comparação é o médico e filósofo italiano Gianni Tognoni. O dado coloca em perspectiva a desproporção entre gastos públicos, mesmo em tempos de hecatombe, e a concentração de renda absurda nas mãos de pouquíssimos magnatas –que agora fazem marketing com doações filantrópicas milionárias para ações contra o vírus.
Epidemiologista, sanitarista, Tognoni é um dos maiores especialistas do mundo em políticas sanitárias. Consultor da Organização Mundial da Saúde, foi diretor científico do centro de pesquisa farmacológica e biológica da Fundação Mario Negri e é secretário-geral do Tribunal Permanente dos Povos (ex-tribunal Bertrand Russell). Falando ao TUTAMÉIA desde a Itália, ele analisa as causas da pandemia, os instrumentos para combate-la e as mudanças de paradigmas que podem surgir a partir do desastre mundial (veja a entrevista no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
“A emergência que estamos enfrentando é consequência direta dos cortes no sistema de saúde e de educação. É difícil reinventar uma sociedade que tenha sido exposta a tantos cortes ao longo de tantos anos”, afirma. Ele fala das políticas que encolheram orçamentos, reduziram os programas de saúde comunitária, minguaram os investimentos em ciência e tecnologia e privatizaram serviços.
“O serviço público não pode ser só concentrado nos hospitais. Os médicos de família são importantes. Na América Latina, foi deixado de lado a atenção comunitária à saúde. Os médicos estão mais acostumados a serem distribuidores de medicamentos do que parte de uma preocupação de saúde da comunidade”, declara.
Agora a questão da comunicação surge como crucial, aponta. “Todos falam da guerra. É direito dos cidadãos receberem informação adequada do que está acontecendo. E a informação não está adequada para motivar as pessoas do que pode acontecer nas próximas semanas ou meses. A comunicação é insuficiente em relação ao direito dos cidadãos de conhecerem os seus problemas”. Para o médico, a linguagem é de militarização, mas deveria focar nas comunidades:
“Deveria ser prioritário garantir a conscientização das populações sobretudo entre os mais desfavorecidos. Os comportamentos das pessoas são muito importantes para prevenir a contaminação extensa e dar uma motivação clara sobre os mecanismos de contaminação. Quando a informação é contraditória, aumenta o risco do medo; e o medo é uma enfermidade social que pode transformar-se em raiva. Não se sabe o que pode acontecer numa sociedade ao longo de semanas ou meses. Não é um inimigo externo que somente os que mandam conhecem, mas um desafio que pertence a todos e não apenas aos que tem um nível de responsabilidade. A responsabilidade é coletiva. Do ponto de vista da democracia, esse é um dos temas mais importantes. A opinião pública deve ter consciência de ter participado das decisões que se tomam”.
Conhecedor do Brasil profundo, Tognoni afirma: “É um horror o que pode acontecer a contaminação nas favelas do Brasil”. Ela fala não só das condições de moradia, saneamento e renda da maioria da população, mas da crescente precarização do trabalho, que introduziu mais vulnerabilidades. Condena as decisões de corte de salário e emprego. “É como dizer: Estamos matando vocês. É uma decisão assassina”. Lembra que na Europa quem está sem trabalho “tem uma seguridade social que lhe permite ficar em casa e seguir recebendo o seu salário”. Também os EUA já anunciaram medidas de pagamento às famílias durante a crise.
O médico observa que, neste momento, até os economistas neoliberais estão declarando que o sistema fracassou. “Pela primeira vez o sistema econômico encontrou o sistema das pessoas. As pessoas não estão previstas nos algoritmos dos economistas. Tudo isso foi revelado agora de uma maneira trágica”. E enfatiza:
“O que fazem os economistas e os detentores de riqueza com seus algoritmos e com seu dinheiro coincide com um crime efetivo, permanente, que produz resultados que se traduzem também nessas epidemias ou pandemias”.
E reforça:
“Parecia que as desigualdades eram questões de distribuição de bens econômicos. Aqui se vê que o sistema neoliberal muda a estrutura da sociedade _ a coloca a serviço exclusivo dos bens dos negócios”. Ele lembra que muitos pensadores já apontaram que “o problema da desigualdade econômica não poderia durar no tempo sem provocar rebeliões da sociedade. Não é tolerável”. Ele critica as cifras de ajuda a empresas e bancos, com pouca ênfase às necessidades das populações. “Se fala de maneira marginal de modificar o modelo econômico”. A questão dos imigrantes, por exemplo, desapareceu nesse momento.
Segundo ele, a União Europeia comente crime conta a humanidade por nada fazer para reconhecer os direitos de cidadania de milhares de migrantes que estão em campos de concentração no continente. “É uma crise muito grave. É um indicador sobre o que se passa quando os negócios são privilegiados. Somos espectadores de um genocídio por gotejamento”.
Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, o epidemiologista trata da evolução da doença, das possibilidades, do papel da indústria farmacêutica e do poder dos Estados em relação a elas. Espera que a pandemia seja uma oportunidade de debate público para uma mudança de paradigma, colocando “os direitos das pessoas em cima ou antes dos direitos dos bens de negócios”.
Sobre o Brasil, afirma:
“O Brasil tem uma história, uma tradição depois da ditadura, de experiências comunitárias com trabalhadores, mulheres. É preciso ver quanto é vital e criativo o papel das comunidades. O grande risco do Brasil hoje é ter um governo que está do outro lado. É preciso que o trabalho para garantir uma defesa contra o vírus esteja vinculado a um trabalho de retomar a democracia efetiva. Fazer a comunicação para as pessoas. É possível ver nessa pandemia, que tomara que não seja tão grave, como uma escola de democracia, não como uma condenação que vem desde fora, como afirmam certos grupos evangélicos”.
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