Interesses de empresas financeiras, de tecnologia de informação, de operadores de serviços e produtos de saúde estão nos bastidores do decreto de Bolsonaro que determinava estudos para privatizar setores do atendimento público de saúde. É o que avalia o médico Alexandre Padilha, ministro da Saúde de Dilma Rousseff, em entrevista ao TUTAMÉIA, na qual examina as consequências de uma eventual privatização na área, os desdobramentos da pandemia, as possibilidades da vacina, a ações dos planos de saúde, de empresas privadas e do capital internacional que busca explorar o mercado brasileiro.

A medida foi revogada após pressão da sociedade, mas Bolsonaro já reafirmou sua determinação em seguir o plano que abre o SUS ao setor privado. O decreto, reforça Padilha, fala em prospecção de oportunidades de negócio. “Não é para melhorar a saúde das pessoas. É para abocanhar, pegar os recursos do SUS, para auferir lucro; não estão preocupados com a atenção à saúde”. Diz o ex-ministro:

“O plano de Bolsonaro é abrir espaço para entregar recursos para os setores privados. Quando o setor privado assume a gestão, ele age como um plano de saúde. Opera para restringir o atendimento do que é mais caro para ter mais lucro. O plano deles é tentar abrir oportunidades de negócios na gestão do SUS. Bolsonaro vai querer entregar segmentos cada vez maiores do SUS para o setor privado. Um dos exemplos é o setor de informação, que está na vanguarda de atores econômicos que querem abocanhar, assumir a gestão, privatizar a gestão do SUS. Guedes opera com fundos de investimento, com um conjunto de atores que tem todo o interesse nesse mundo dos dados. É vender esses dados de atenção de saúde de milhões de brasileiros para a indústria farmacêutica, de produtos, publicidade”.

Criado a partir da Constituição de 1988, que estabelece que a saúde é um direito de todos os brasileiros e um dever do Estado, o SUS está presente de forma capilar em todo o país. Mais de 160 milhões de brasileiros usam o sistema público de forma exclusiva. Mesmo quem tem plano de saúde (22% da população), diz Padilha, usa o SUS em emergências, quando o plano não dá cobertura e se beneficia de ações para o coletivo, como a Vigilância Sanitária, responsável pela fiscalização de mercados, bares, restaurantes.

Na ponta do atendimento, o SUS reúne mais de 40 mil unidades básicas de saúde. São 300 mil agentes comunitários de saúde; mais de 36 mil equipes de saúde da família. É informação que não acaba mais. O sistema conhece a casa das pessoas, sabe quantas pessoas vivem lá, o que possuem, se tem água, esgoto, quais são os hábitos alimentares, se há casos de obesidade, hipertensão, diabetes. “Tem um grande interesse de vários atores privados em deter essas informações, para vende-las ou tomar decisões estratégicas sobre medicamentos, produtos da saúde etc.”, afirma o ex-ministro.

Na avaliação de Padilha, Bolsonaro teria dificuldade em apresentar um plano de privatização aberto do SUS, pois esbarraria na necessidade de mudança da Constituição e enfrentaria enorme resistência na sociedade. Daí a estratégia de privatizar partes, a gestão, por exemplo. “Eles vão caminhar por aí, não enfrentando o debate da Constituição, e sufocando financeiramente o SUS, fragilizando-o ainda mais, segurando recursos”.

Para ele, há muito interesse estrangeiro. “Sempre teve o interesse de quem detém a alta tecnologia, a indústria farmacêutica, porque o SUS é um mercado público robusto. Existe interesse da indústria de produtos para a saúde, de tecnologia. Mas há um novo interesse internacional, que vem da última década, das grandes empresas internacionais, que é a gestão de serviços de saúde. Sobretudo nos EUA, onde o sistema é privado. Lá, eles perceberam que, se não aprimorassem muito a gestão, haveria redução dos lucros das operadoras dos planos de saúde. Desenvolveram tecnologias de gestão. Ter os dados e usá-los para a gestão –há muito interesse nisso por parte de segmentos internacionais que mexem com tecnologia da informação, análise de dados, formação de profissionais. A irmã do Guedes, por exemplo, é operadora de um grupo importante de formação médica no país. Ter esses dados é importante. Querem aferir lucros em cima desses dados. Tem muito interesse que envolve o setor financeiro, o de tecnologia da informação e operadores de gestão de serviços de saúde de abocanhar recursos do SUS”, declara.

O ex-ministro ressalta que o capital externo “sempre viu o Brasil como uma fronteira que ele teve dificuldade em avançar. Consegue avançar com muita força na Índia e em países que não têm sistemas públicos de saúde”. Há interesse também no setor privado, onde já há estrangeiros em vários segmentos: hospitais, planos de saúde, farmácias. Estão no setor privado hoje 22% dos brasileiros –40 milhões de pessoas. “É um mercado quase do tamanho da Espanha; é maior do que o do Canadá. Há interesse de entrar”, diz Padilha.

PANDEMIA DEIXOU PLANOS MAIS RICOS

Nesta entrevista (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV), Padilha avalia a evolução da pandemia no Brasil e no mundo, fala da necessidade da continuidade nos cuidados de prevenção e das perspectivas para a vacina.

O ex-ministro afirma que o Brasil é um exemplo negativo de resposta à Covid 19. “O país tem um grande ativo que poderia ter sido utilizado para reduzir as mortes, o SUS. Quando chegou a covid, o SUS estava no momento mais frágil da sua história. O sistema poderia ter respondido muito melhor se Bolsonaro deixasse, se ele não tivesse criado todas as situações que criou, a própria guerra com os governos estaduais, municipais, a guerra contra a ciência, o negacionismo. São atitudes absolutamente genocidas de Bolsonaro. Hoje estamos num momento ainda crítico da pandemia; não é para baixar a guarda”.

Padilha cita mais um número que revela a importância do SUS. Na pandemia, 93% dos exames de covid no país foram feitos pelo SUS. Só 7% foram feitos pelo setor privado, embora ele englobe 22% da população. “Na pandemia, os planos de saúde ficam mais ricos porque não assumiram todo o atendimento da covid 19, nem em relação aos exames, nem às internações. Eles tiveram que passar menos recursos para os hospitais privados, porque cirurgias eletivas foram desmarcadas, exames de check-up foram cancelados etc. Eles fazem parte dos milionários que ficam mais milionários durante a pandemia. O setor privado agiu como sempre age: a lógica dele é obter lucro. Ele mantém o serviço enquanto isso gera lucro”.

Já o setor de hospitais privados teve redução no faturamento, acrescenta o médico. “Eles faturam muito com as cirurgias eletivas, que foram adiadas, canceladas. Estão querendo recuperar esses recursos. E uma parte do interesse do setor privado em abocanhar recursos do SUS também é para isso. Já que não conseguem pegar do plano de saúde, estão pensando em montar negócios para que conseguir pegar esses recursos do SUS para aliviar a perda de faturamento durante a pandemia”.

O ex-ministro defende a derrubada do teto de gastos como vital para o fortalecimento do SUS. No curtíssimo prazo, prega um movimento que impeça o corte de R$ 35 bilhões do orçamento da saúde para o próximo ano. “A gente não pode permitir que isso aconteça. A mesma mobilização que teve nesses dias para a revogação do decreto [de privatização do SUS] precisa haver para não permitir que sejam retirados recursos do ministério da saúde na votação do orçamento no Congresso. Pandemia não se acaba com decreto. Ela continua. É preciso reforçar os cuidados, a solidariedade e a defesa do SUS”.