“Hoje o mundo é mais desigual do que há dois anos, antes da pandemia. Isso nos diz que temos que ser muito ambiciosos. Porque, se quisermos voltar mesmo ao ponto em que estávamos antes da pandemia, temos que ter muita força política para aprovar, por exemplo, reformas tributárias que permitam diminuir essa desigualdade. Há muito mais pobreza, em particular em países onde o Estado não funciona bem e as instituições são frágeis, como na América Latina. Houve retrocessos muito grandes. Isso, num ambiente democrático, permite alternância. Se os governos dessas novas alternâncias puderem levar adiante os seus programas para a América Latina vai ser uma coisa positiva. Num ambiente de polarização, com maior pobreza e maior desigualdade, as pressões para que essas mudanças aconteçam rapidamente serão muito fortes. Os governos terão cobranças muito rápidas e com muito peso de parte da sociedade. Então, não há tempo a perder para os governos que chegam ao poder”.

A avaliação é do cientista político Gaspard Estrada ao TUTAMÉIA. Diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e Caribe da Sciences Po, em Paris, ele analisa as mudanças políticas na América Latina e os desafios para os governos progressistas. Examina o quadro do continente à luz do embate entre Estados Unidos e China e descreve os impactos da pandemia no globo.

Nesta entrevista, Estrada, que recebeu Lula no evento da Sciences Po em novembro do ano passado na França, trata das chances do ex-presidente petista e dos obstáculos que o líder nas pesquisas deve enfrentar nos próximos meses. Afirma que Bolsonaro está perdendo espaço na extrema direita pelo mundo e que sua base política está fazendo água no país. (Acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Sobre a situação latino-americana, fala Estrada:

“Há alternâncias políticas acontecendo na região. A pandemia trouxe para os governos um desgaste muito forte. Na verdade, esse desgaste já estava se produzindo antes da Covid. No Chile, houve muitas manifestações, que inclusive levaram à criação de uma assembleia constituinte antes da pandemia, por causa do movimento estudantil. A tradução política foi a constituinte e, depois, a eleição do Gabriel Boric. Isso está acontecendo em outros países da região. Isso pode acontecer na Colômbia, onde, se as pesquisas estiverem certas e se o quadro não mudar até maio, pela primeira vez a esquerda poderia chegar ao governo nacional. E pode haver uma volta do presidente Lula ao Palácio do Planalto no ano que vem”.

ESTADO, SAÚDE E IDEIAS DE ESQUERDA VOLTAM AO CENTRO DO DEBATE PÚBLICO

Estrada observa que a crise atingiu governos que não agiram de forma eficiente e rápida na pandemia, provocando muita impopularidade. Isso gera uma mudança no cenário político.

“As temáticas que são defendidas pelos governos de esquerda, em particular a presença do Estado, as ideias de reduzir a desigualdade, estão voltando ao centro do debate público por causa da pandemia. A pandemia revelou a ineficiência e a grande problemática dos estados nacionais latino-americanos e a necessidade de se ter sistemas sanitários mais eficientes e que atendam a toda a população”, afirma o cientista político.

Ele acrescenta:

“Essa pandemia demonstrou o problema do estado latino-americano. Um estado que, fora o Brasil, arrecada poucos impostos e que funciona mal. O assunto das reformas tributárias, do redimensionamento do estado e das políticas públicas aponta caminhos para sair da crise e combater tanto a pobreza quanto a desigualdade. São os grandes eixos do que está acontecendo hoje na região. Gabriel Boric está anunciando uma reforma tributária, que é assunto também na Colômbia. Isso vai ser debatido em 2022 na América Latina”.

Assim, segundo Estrada, na medida em que se ultrapassa a tragédia com milhões de mortos, é possível dizer que o quadro de hoje é melhor do que o de antes da pandemia. “Assuntos como a volta do estado, a necessidade de fazer melhores regulações, a fiscalidade, a melhoria dos serviços públicos estão voltando com força no debate público. Isso tem traduções eleitorais. A gente pode ver isso na América Latina, nos Estados Unidos”.

Ele segue:

“A eleição do Biden e esses pacotes de investimento são reflexos disso. O que está acontecendo na Europa também, seja na Europa do Norte, na Espanha, na Alemanha, como agora. É um contexto em que o debate político está também muito empobrecido, porque há um ambiente mais polarizado. As redes sociais são um fenômeno mundial, inclusive em países autoritários. Esse ambiente político não beneficia o debate público, o que é ruim”.