“A mídia nativa segue pautando a política nacional. Ninguém se iluda que esse poderio vai se alinhar a Lula. Não vai. Seus interesses são outros. Afinal, o cerne do projeto econômico bolsonarista é igual ao da mídia: um ultraneoliberalismo antipovo, antinacional e entreguista. Já agora, na cobertura dos primeiros dias da transição, a histeria e o alarmismo são a tônica, com editoriais furibundos tentando impor rumos ao país. Sem enfrentar o desafio de construir meios para difundir a sua visão de mundo, o governo Lula seguirá refém das empresas e vulnerável a manipulações, complôs e golpes. A história mostra que os embates tendem a se acirrar, e o risco de impeachment não pode ser descartado.”

É a avaliação da jornalista Eleonora de Lucena, editora do TUTAMÉIA, que participou no último sábado de debate promovido pelo Núcleo de Memória Política e pelo Memorial da Resistência para discutir a situação do país. Clique no vídeo para acompanhar a íntegra do evento, que teve a participação da deputada federal eleita Juliana Cardoso (PT-SP), da codeputada estadual eleita Paula Nunes (PSOL-SP) e do professor Gilberto Maringoni, da UFABC. Leia a seguir o texto apresentado pela jornalista.

 

TRANSIÇÃO APONTA PARA

DISPUTA FEROZ E BOMBA MIDIÁTICA

Choramos e gritamos de alívio no 30 de outubro, uma data que já está na história do Brasil como um marco: a derrota da extrema direita e a volta do maior líder popular do país.

Com sua terceira vitória, Lula entra definitivamente para o rol dos grandes vultos populares da história mundial contemporânea, ao lado de nomes como Mandela, Perón e Getúlio.

A vitória de Lula tem um significado maior em razão da conjuntura internacional. Guerra na Ucrânia, com possibilidades de explosão de um conflito em escala mundial, tensão crescente entre Estados Unidos e China e avanços fascistas em vários países, fruto das políticas neoliberais desta fase do capitalismo –esses são os três elementos centrais do cenário.

Nas últimas décadas, se acelerou o processo de demolição de direitos conquistados no pós-guerra em várias partes do mundo. A exploração de trabalhadores se intensificou, o saque ao ambiente foi amplificado, a concentração de renda cresceu em ritmo acelerado.

A pandemia escancarou a condição de esgotamento e de falta de perspectiva que perpassa a maior parte da humanidade. É nesse caldo de cultura que viceja o fascismo, com similaridades com o que aconteceu há cem anos na Europa.

A resistência começa a ganhar fôlego. Vitórias da centro-esquerda na América do Sul tentam brecar a extrema-direita. Mas nada se compara ao feito de 30 de outubro no Brasil –uma virada saudada mundo afora, que pode significar a reconstrução de um mundo destroçado e cada vez mais desigual.

A emergência da China, atacada agora pelos Estados Unidos via Rússia, mostra que o globo caminha para uma multipolaridade, o que perturba o imperialismo norte-americano. E a marca da multipolaridade está cravada em Lula. Agora, fortalecido pela vitória perante o fascismo, ele já age para isolar as forças do retrocesso e da barbárie.

Basta ver o seu desempenho na COP 27 neste novembro no Egito. Seu discurso foi centrado no ataque à concentração do poder global. Lula falou em nome do que antigamente se chamava de terceiro mundo, os não-alinhados.

TERRORISMOS

Nessa primeira quinzena pós-eleição, o brilhantismo de Lula no cenário mundial foi acompanhado, aqui no Brasil, por duas cenas de terrorismo.

Financiados por grupos econômicos extremistas e incentivados pelo bolsonarismo dos quartéis e por seitas fundamentalistas instrumentalizadas pela extrema direita, bandos criminosos foram orientados a provocar o caos nas estradas.

Punhados de gente nutrida por mentiras e carne gratuita se reúnem em frente a quartéis, impulsionados pelo presidentezinho covarde e asqueroso. É um tipo de terrorismo.

O segundo tipo de terrorismo vem da Faria Lima, fiel aliada do bolsonarismo e de todos os ismos (do passado, do presente e do futuro) que se colocarem contra o povo e contra os interesses da nação. Os senhores dos fundos, das fintechs, do chamado mercado financeiro –que há tempos dita a pauta dos meios de comunicação– vocifera contra os pobres e clama pela manutenção do teto de gastos.

Teto de gastos tantas vezes furado por Bolsonaro sem um pio desses que hoje falam em “responsabilidade fiscal”. Teto de gastos que representa, em última instância, a garantia da transferência de riqueza dos mais pobres para os mais ricos. É assim que o dito “mercado” pressiona para tutelar Lula enquanto trama contra ele.

Resta saber como atuarão as Forças Armadas, que foram essenciais para a ascensão de Bolsonaro. Antinacionais e antipovo, não é provável que, finalmente, de um momento para o outro, fiquem resignadas a seu papel constitucional. Em claro ataque à Constituição, comandantes militares defendem o golpismo abertamente. Incitam crimes, atacam cotidianamente a democracia e parecem acreditar que ficarão impunes.

DISPUTAS NA FRENTE

Até agora, o golpe tramado por Bolsonaro não deu certo: os Estados Unidos foram contra; os donos do dinheiro grosso foram contra; a mídia foi contra. Por enquanto, uma frente democrática como nunca se viu na história do Brasil (nem mesmo nas Diretas) deteve a ditadura almejada pela extrema direita.

Lula terá que seguir articulando as frações democráticas da burguesia, os movimentos populares organizados, a opinião pública internacional para bloquear as ameaças que continuarão esperando uma oportunidade para golpear o líder que condensa o avesso deles: legitimidade, interesse popular, força política do voto.

Não é difícil prever as inevitáveis fissuras na frente, as disputas por posições nos ministérios, a voracidade por verbas. No Congresso, a guerra pode ser amornada pela força do novo governo. Mas a história mostra que os embates tendem a se acirrar, e o risco de impeachment não pode ser descartado.

Talvez os derrotados de 30 de outubro tentem recriar a atmosfera envenenada do segundo período Vargas, a partir de 1951, buscando criar uma chuva de obstáculos para o governo, a ponto de tentar paralisá-lo. Lula conhece a história.

Até agora, a frente ampla consolidada em torno da sua candidatura conseguiu atrair uma parcela significativa da burguesia, muitos dos que tinham apoiado o golpe de 2016 e ficado com Bolsonaro em 2018. Lula colocou uma cunha no agrupamento empresarial.

A democracia não foi o único vetor a galvanizar o apoio ao petista. Setores mais ligados ao mercado interno talvez enxerguem mais possibilidades em um governo voltado ao conjunto da população –e não apenas ao muitíssimos mais ricos. Num cenário de conturbação mundial, a ideia de um projeto nacional pode significar um rearranjo que beneficie as elites locais.

Ao contrário do que ocorreu na primeira década deste século, as elites precisarão entender que um projeto assim pode significar um salto para o país. E que isso necessariamente vai contrariar os Estados Unidos, que tentará bloqueá-lo, como aconteceu em 2016. A questão é saber se as elites estão dispostas a enfrentar essa batalha pela independência, de resto já travada pelas elites vitoriosas pelo mundo afora.

Deixando mais isolados os grupos associados ao capital externo e aglutinando segmentos locais em torno de desenvolvimento, crédito, avanço tecnológico e mercado consumidor, Lula poderá seguir se equilibrando na frente com empresários, políticos conservadores, lideranças dos movimentos sociais, parcelas importantes das classes médias e da intelectualidade.

De todo modo, a disputa feroz pelos fundos públicos não cessará. Donos do dinheiro grosso, financistas, congressistas cada um buscará o seu naco, pressionado o governo em favor das minorias de sempre.

Movimentos populares, sindicatos, grupos organizados da sociedade vão buscar recuperar o que perderam nos últimos anos e avançar com novas conquistas. É a luta em curso.

ORGANIZAÇÃO E MOBILIZAÇÃO

Após anos de desmonte e retrocesso civilizacional, a resistência parece ter aprendido algumas lições. Foi para a rua na campanha eleitoral e está mais atenta para refutar a avalanche de mentiras que move a seita fundamentalista da extrema direita.

Passada a comemoração do 30 de outubro, a militância começa a perceber que mobilização e organização são palavras que devem permanecer no cerne de seu cotidiano pelos próximos anos. Esse movimento não aconteceu em eleições passadas, quando a acomodação e a cooptação entraram em campo.

Tudo ainda é embrionário, mas começa a tomar corpo a compreensão de que o governo precisará de constante ação popular. Ação para pressionar pela efetivação das mudanças e ação de respaldo para afastar golpes.

COLÔNIA E SOBERANIA

A extrema direita internacional não abandonará a sua ideia de submeter o Brasil à posição de colônia. Embora derrotada nas urnas, vai tentar recompor forças para voltar e disputar o poder, pelo voto ou na marra. Qualquer deslize do novo governo pode servir de pretexto para mobilizar o exército fardado e o exército fanatizado.

A usina de mentiras não vai cessar –a não ser que o Estado consiga impor, de fato, a lei. É preciso destacar que o Judiciário, enfim, mostrou que pode se refazer e garantir minimamente condições de justiça. Que continue assim.

Para enfrentar o desafio de governar o país e mudar a sua face por completo, Lula terá que se voltar para o exterior. Organizar uma coalizão sul-americana e do Sul global vai ser essencial para fazer frente às inevitáveis pressões do império sediado em Washington e das pretensões chinesas no continente. Um projeto real de soberania deverá buscar novas bases internacionais de cooperação e de disputa.

Os poucos dias da transição já permitem antever essa série de embates em frentes diversas. A batalha sobre o teto é apenas a primeira. Depois, veremos o debate sobre a necessária punição dos governantes genocidas e sobre as medidas emergenciais que devem fazer o país respirar de novo.

Lula tem dito que tem pressa. Deve ter muita pressa mesmo. Seus primeiros meses são fundamentais para reerguer o país, mostrar caminhos e apontar para um futuro solar. Só assim conseguirá começar a desinflar a extrema direita.

MÍDIA E DESBOLSONARIZAÇÃO

Desbolsonarizar o país e pregar a paz não será tarefa fácil. Dificilmente, as famílias estarão reunidas para acompanhar a Copa. Poucas poderão se encontrar com tranquilidade no final do ano. A missão de promover o ódio, a fragmentação da sociedade e a secessão foi alcançada, ainda que parcialmente.

Esse é o fundamento do fascismo, que, no limite, significa a destruição física de países, pela guerra, como aconteceu na Itália e na Alemanha. Apesar da vitória impressionante de outubro, levará algum tempo para o Brasil se reencontrar e se levantar. Mas essa é uma tarefa primordial.

Nisso tudo, a mídia está no centro do jogo. A chamada mídia corporativa foi essencial para construir o ambiente para o golpe que derrubou Dilma, para a prisão de Lula e para a eleição de Bolsonaro. Depois, apesar de exceções, foi ela que normalizou o fascismo emanado pelo governo.

A pandemia borrou o apoio midiático ao genocida. Mais tarde, a falência da dita terceira via, a reaproximação de parcelas da burguesia da candidatura Lula e o apoio dos EUA às regras eleitorais brasileiras levou parte das empresas a amenizar a ojeriza que têm em relação aos projetos populares.

Não deixaram, no entanto, de tentar igualar as candidaturas e forjar comparações em nome de um mal disfarçado bolsonarismo, escondido sob o manto da imparcialidade e do apartidarismo. Afinal, o cerne do projeto econômico bolsonarista é igual ao da mídia: um ultraneoliberalismo antipovo, antinacional e entreguista.

Boa parte das redes de TV manteve engrenada a pauta da extrema direita: além do neoliberalismo genocida, medo, religião manipulada, ódio aos pobres, mentira deslavada.

A terra sem lei do WhatsApp e quejandos segue dominada pela direita e levará tempo para que essa bomba seja desmontada. A extrema direita, alimentada inicialmente pela mídia tradicional, já organizou seus próprios meios, revistas, jornais, canais de TV e se coloca como “legítima” no jogo de informações, misturando desonestidade, mentira, sensacionalismo, crime e religião.

No plano da internet, a mentira também seguiu quase solta, amparada pelas grandes empresas internacionais que dominam a cena, como o Facebook e o YouTube. Essas ampliaram o seu poder, deixando agora só migalhas para as famílias tradicionais do setor.

Embora esmagada pela força do capital externo, a mídia nativa segue pautando a política nacional. Suas matérias e seus editoriais são reproduzidos nos jornais locais, nas rádios espalhadas pelo país afora. Ninguém se iluda que esse poderio vai se alinhar com o governo. Não vai. Seus interesses são outros. Simples assim.

Já agora, na cobertura dos primeiros dias da transição, a histeria e o alarmismo são a tônica, com editoriais furibundos tentando impor rumos ao novo governo. Desprezam o contraditório, a pluralidade e a história. Inspirados na tática militar de fazer uma chuva de disparos para impedir ou atrasar o avanço do inimigo, abrem verdadeiro fogo de barragem midiático contra o governo Lula.

Meios alternativos de esquerda são quase gotas no oceano midiático. Pouco interferem na conjuntura. Fragmentados e produzindo pouca informação original e relevante, atingem parcela ínfima da população.

O mais importante: não têm a pretensão ou a capacidade de alinhar a cada momento a sua visão de mundo, a análise de conjuntura que aponte os problemas e novos caminhos. Dessa forma, ficam enredados na lógica de pulverização e compartimentalização imposta pelo modelo neoliberal.

A apresentação de uma visão estratégica do mundo está na mão da mídia tradicional, do capital externo e de seus associados internos.

Sem enfrentar o verdadeiro desafio de construir meios para difundir a sua visão de mundo, o governo seguirá refém das empresas e vulnerável a manipulações, complôs e golpes.

Lula mostrou que é possível enfrentar esse bicho de sete cabeças. Apesar de toda a campanha destrutiva e mentirosa, ele se reergueu –“ressuscitou”, como disse em seu discurso de vitória.

Mas a guerra continua, e será preciso um novo modelo de comunicação para alicerçar as conquistas e rechaçar o bombardeio feroz que vem por aí.

Ninguém em mais condição de lidar com essas contradições do que Lula. O Brasil e o mundo estão com sorte.