“NÊGA, NÃO SE PREOCUPE, EU JÁ VOLTO”, disse o operário metalúrgico Manoel Fiel Filho à esposa, Thereza, instantes antes de ser carregado, sequestrado por dois agentes policiais da ditadura militar. Não voltou. Depois de horas sem fim de tortura nas câmaras de violência do DOI-Codi, morreu no dia seguinte, 17 de janeiro de 2016.

Hoje, 45 anos depois do assassinato –travestido de suicídio, como foram as mortes de Vladimir Herzog e do tenente José Ferreira de Almeida, ocorridas meses antes no mesmo DOI-Codi–, TUTAMÉIA homenageia a memória do alagoano pai de duas filhas, que militava na época como delegado sindical na pequena empresa metalúrgico em que trabalhava.

“Aquela estratégia de matar era uma estratégia do Estado brasileiro. Nesses casos, usaram essas providências [de apresentar como suicídio] por causa do escândalo. Como acreditar no suicídio de alguém contra quem nada se apurou, alguém em vias de recuperar a liberdade?”, fala o advogado Belisário dos Santos Jr., que representou a família de Fiel Filho em ação para responsabilizar os autores do crime.

“Houve um homicídio, um homicídio que precisa ser apurado. A morte de Manoel Fiel Filho foi em 1976, mas essa tentativa de apuração ocorreu vários anos depois, quando a viúva, Thereza Fiel, procurou a Comissão de Justiça e Paz, que delegou a mim e a Maria Regina Pasquale, e nós entramos então com pedido de reabertura do inquérito. Juntamos várias provas, declarações de peritos demonstrando que não tinha sido suicídio”, diz o advogado, que durante a ditadura militar teve forte atuação em defesa dos presos políticos e no combate às agressões aos direitos humanos.

“Dissemos que um crime tinha sido cometido, demos as características do crime, e os próprios militares que comandavam o DOI-Codi eram responsáveis, por omissão. Há uma série de crimes que nós imputamos a eles. Mas não adiantou. Era um auditor substituto, Arílton da Cunha Araújo, é bom falar o nome dessas pessoas, que decidem desse jeito. Ele disse que não, escreveu uma bobajada para ocultar o crime”, lembra Belisário dos Santos Jr. (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV)

O recurso também não teve sucesso: “Nós recorremos ao Superior Tribunal Militar. Dissemos que houve um homicídio. Se eles não achassem que tinha havido um homicídio, houve um sequestro. Não havia ordem de prisão, não havia nada. Houve um sequestro, houve homicídio, vários crimes. E havia os crimes dos militares que eram chefes, que respondiam pela chefia”.

Em tudo havia a tentativa de esconder os crimes, de negar a tortura, que por si mesmo é crime contra a humanidade: “O crime de tortura é um crime profundamente ligado à covardia. Várias pessoas enfrentando uma só, muitas vezes vendada, muitas vezes inerte, inerme. É um crime da covardia. É um crime produzido por aqueles que acham que estão acima da lei, que estão acima do direito. Ele acompanha os regimes autoritários”.

Belisário prossegue: “Dom Paulo falava que a tortura é o pior dos crimes. Tenta eliminar não a vida, mas a dignidade da pessoa humana. A tortura é crime da covardia.”

A brutalidade tinha objetivo, no dizer do advogado, que foi secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do estado de São Paulo: “A tortura é um instrumento da conservação do poder. Os chefes promoveram um Estado em que a tortura era um instrumento importante. Era um instrumento de conservação do poder, matando a oposição, calando a oposição, cassando a oposição. A oposição era considerada os inimigos internos. E, com base nesse conceito, da segurança nacional, inimigo interno, guerra psicológica adversa, a consequência é a aplicação dos mecanismos que se usam nas guerras: a Justiça Militar, a repressão interna a cargo dos organismos de segurança militares”.

Mesmo com a ditadura derrotada, isso deixou marcas na sociedade brasileira, segundo a avaliação de Belisário, integrante da Comissão Arns: “A transição para a democracia foi um processo inacabado. Quem tinha roubado não foi punido, quem tinha matado não foi punido, quem tinha matado e executado pessoas não foi punido, eles não foram punidos. Isso foi péssimo para a transição. A punição de quem pratica esses crimes é fundamental. A Argentina tem até hoje dois ex-presidentes presos, o Pinochet morreu preso –em casa, sim, mas preso, prisão domiciliar. Tivemos uma transição mais malemolente, mais jabuticaba, e as coisas foram ficando para trás”.

O resultado, afirma ele é que “temos hoje então uma democracia mal acabada. Forte, porque as instituições são fortes, temos Congresso, Senado, as pessoas que sentam nas cadeiras às vezes sentem a responsabilidade. Temos um Supremo Tribunal, temos uma Ordem dos Advogados que tem força, uma Ordem dos Advogados que tem força, uma sociedade pujante que, mesmo com pandemia, faz o que tem de fazer. Mas nós não acabamos…”

Esse trato inacabado tem consequências, afirma Belisário: “Infelizmente, acho que essa é uma das explicações para que, depois de tantos anos de democracia, aparece um cidadão, e a gente não consegue sequer pôr em votação o impeachment. Não adiantam declarações de autoridade, dizendo que Bolsonaro cometeu um crime, que isso é absurdo, ele não devia ter feito. Às vezes, parece que também não adiantam decisões judiciais que digam: Fica sem efeito isso. Porque aquele que tem aquele intuito, aquele viés autoritário, vai fazer outras coisas naquele mesmo sentido. O homem que comandou manifestações contra o Supremo recuou, mas ele ainda pensa do jeito que ele pensava antes. Ele pensa que o AI-5 seria uma saída boa para ele, volta e meia há alguma coisa embutida em algumas dessas leis que estão saindo. Há sempre alguém na tentativa de minar essa história de democracia. As pessoas não estão do mesmo lado. Tem um grupo de pessoas que quer a democracia, e tem um grupo um grupo de pessoas que quer a democracia desmoralizada”.

Ao mesmo tempo, a sociedade não tem ficado totalmente em silêncio, assistindo à destruição. A própria família de Belisário é exemplo disso: “Tenho uma mulher muito militante. O dela foi um dos primeiros pedidos de impeachment. Eu redigi. O pedido dela dorme com outras dezenas. E o pedido dela foi em um dos três primeiros meses do governo, em 2019. Ali já se alinha a forma autoritária de condução. Ele começou a desconstruir toda a defesa do meio ambiente, começou a desconstruir os direitos humanos. Aquelas pessoas todas que ele põe nos ministérios, a gente sabe que é para destruir, que é para impor uma nova cultura, uma cultura com leve toque religioso, mas uma cultura descumpridora dos direitos humanos. E aí há uma sucessão de ações no Supremo Tribunal Federal fazendo com que as medidas que ele adotava fossem rapidamente desmobilizadas. Mesmo assim ele conseguiu aprovar muita coisa. E agora quer passar um projeto de retirada dos governadores do controle das polícias militares e das polícias civis”.

Esse projeto, assim como a ameaça de confisco das vacinas de São Paulo, são evidências da essência desse governo: “O Governo age sempre de forma autoritária porque ele tem esse viés autoritário. Ele não consegue dialogar, não consegue falar, escutar, responder. Portanto, ele usa essas armas. É uma atitude autoritária de quem não fez nada todo esse tempo e agora quer aparecer na foto. Ele vai aparecer na foto, mas na foto das pessoas desacreditadas, na foto do avião que não pode decolar por falta de combinação prévia. Enfim, é desmoralizante esse governo. Temos um Brasil pujante, uma sociedade pujante, temos tantas coisas importantes, tantos problemas importantes, e temos de ficar nesse mimimi desse governo incompetente”.

E Belisário conclui:

“Quando ele fala em passar mais poderes para a polícia, ele agrada a polícia, que quer ter mais poderes, quer depender menos dos governadores. Quando ele fala em mecanismos para conter a violência policial, na realidade o que ele quer é diminuir o poder do habeas corpus., e aí ele sensibiliza outra corporação, que é a corporação do Ministério Público, que apostou. Ele sempre tenta cooptar alguma instituição. Já tentou fazer isso com a Polícia Federal, com o Ministério da Justiça, com a polícia do Rio, com o Ministério Público do Rio. Ele tenta cooptar. Nunca ele faz sozinho. Às vezes, ele faz com a mão do gato, mas está tudo sendo orquestrado, muito bem orquestrado.  Ele está se cercando… De vez em quando, ele põe uma manguinha, depois volta… Ele está construindo. Não sei que tipo de Frankenstein ele pensa construir, mas ele está tentando. Incentiva o desmatamento, os índios estão sob ataque de madeireiros, de fazendeiros. Ele está construindo. Ou destruindo, mas construindo um mundo para ele. Sob o ponto de vista dos costumes, ele está tentando decompor tudo o que havia sido conquistado. E, pior, ele está se antagonizando com parceiros históricos do Brasil. Ele é um homem que, aos trancos e barrancos, vai criando uma situação absolutamente insustentável. E, para nós, insuportável. Tudo com base no discurso de ódio construído a partir do gabinete do ódio na presidência da República. É lamentável. O ódio não prevalecerá.”