“Eu tenho vontade de chorar porque eu vejo uma sanha destruidora, um desejo de destruição de tudo que foi construído. São vidas, são pessoas, são produções. Quanto investimento existe! O Maiakovski dizia assim: ‘Você sabe quantos quilos de sal eu como para produzir uma frase de um poema?’ Quanto custou à sociedade, à humanidade para uma obra chegar até lá?”

Palavras da cineasta Tata Amaral ao analisar o incêndio que destruiu parte do acervo na Cinemateca Brasileira em São Paulo, no dia 29 de julho. Ao TUTAMÉIA, ela avalia dos ataques à cultura perpetrados pelo governo Bolsonaro, da resistência, da necessidade de políticas públicas e do panorama do áudio visual no país com a ascensão das plataformas.

Diretora de obras como “Antônia”, “Trago Comigo” e “Hoje”, Tata coloca o incêndio na Cinemateca no mesmo contexto da política bolsonarista contra a saúde, a ciência, o conhecimento, os direitos, a vida. Acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva do TUTAMÉIA TV.

E a quem interessa essa sanha destruidora? Tata responde:

“Essas pessoas que não estão nem aí para a vida, para a cultura. Está no mesmo lugar: 550 mil vidas, não comprar a vacina no momento adequado para salvar as pessoas, não construir leito de UTI, não testar pessoas para que o vírus não se propague. É a mesma matriz”.

Nesta entrevista, ela fala da importância da Cinemateca para a cultura nacional e do trabalho dos profissionais especializados no acervo, que há tempos alertam para os riscos provocados pelo descaso e abandono da instituição pelo governo federal (leia ao fim deste texto a nota dos trabalhadores da Cinemateca).

“Para mim é muito duro atravessar esse incêndio. Quando a gente fala cultura parece uma coisa abstrata. Mas ali estão coisas que foram produzidas, que foram criadas durante décadas por todos os brasileiros. São documentos, filmes, vídeos que aconteceram em produção. Eu sou uma pessoa de produção, de criação. Então a ideia da destruição –da destruição de vidas e, agora a gente vê a destruição desse acervo—é muito duro. Porque esse incêndio ele atesta um descaso. É um incêndio que poderia ter sido evitado. Não é um acidente divino. Não era para acontecer”, declara a cineasta.

Ela segue:

“Para nós, criadores, é muito difícil testemunhar isso. A gente tem que estar de olhos bem abertos e com muita resistência à sanha destruidora, porque a gente é da criação. A criação é o oposto da destruição. [A destruição] interessa a esse governo fascista, que, pelo que a gente lê, está só interessado em enriquecer a si próprio e não produzir bens sociais e culturais: não produzir a saúde da população, não pensar em conhecimento, em saúde, em vida, em prazer, em alimento saudável”.

“Sei que a criação é próspera; ela deve ser para todos. Há aqueles que defendem privilégios, defendem que a riqueza é de alguns em detrimento de outros em qualquer esfera –na produção de alimentos, de conhecimento, na produção de bens materiais e imateriais. A gente tem opção. De que lado você está? Você está do lado da construção ou da destruição?”, afirma.

Para Tata, a criação, nesse momento de ataque e de destruição, é uma forma de resistência. “Do nosso ponto de vista de artista é não abandonar a utopia, o nosso desejo nosso imaginário, e, ao mesmo tempo, construir materialmente. Não basta ficar em casa sonhando. A gente tem que materializar os sonhos. A resistência é se organizar, conversar, discutir soluções, continuidades. As saídas são coletivas principalmente”.

Estado de parte do acervo da Cinemateca depois do incêndio – Foto Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo

CRIME ANUNCIADO!

Manifesto dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira sobre o incêndio na unidade da Vila Leopoldina

O incêndio que acometeu o edifício da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina na noite de 29 de julho de 2021 foi um crime anunciado, que culminou na perda irreparável de inúmeras obras e documentos da história do cinema brasileiro. Essas instalações são parte fundamental e complementar em relação ao espaço da Vila Clementino, onde se encontra armazenada a maior parte do acervo da Cinemateca Brasileira.

Recentemente, em fevereiro de 2020, uma enchente já havia afetado grande parte do acervo documental e audiovisual lá depositado.
Há mais de um ano denunciamos publicamente a possibilidade de incêndio nas dependências da Cinemateca pela ausência de quaisquer trabalhadores de documentação, preservação e difusão. Houve o alerta sobre a chance de o sinistro ocorrer nos acervos de nitrato da Vila Clementino, pois trata-se de material inflamável que pode entrar em autocombustão sem revisão periódica. Não foi o caso deste, o quinto incêndio na instituição. No entanto, as causas são as mesmas. Seguramente, muitas perdas poderiam ter sido evitadas se os trabalhadores estivessem contratados e participando do dia a dia da instituição.

No próximo dia 8 de agosto completará um ano do abandono da Cinemateca Brasileira pelo Governo Federal e a demissão de todo seu corpo técnico, que sequer recebeu os salários não pagos e as rescisões pela anterior gestora, Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – Acerp. Ainda assim foi noticiada a contratação de equipes de manutenção, bombeiros e limpeza. Apesar de serem fundamentais para o funcionamento do arquivo de filmes, não são suficientes para suas demandas específicas, como evidenciado neste dia fatídico.

A situação se torna mais crítica se pensarmos que essa ausência de equipe técnica especializada por um ano possivelmente teve consequências irreversíveis para o estado de conservação dos materiais. Certos danos são silenciosos, porém tão trágicos quanto um incêndio, e igualmente irrecuperáveis. Trata-se do tempo de vida dos diversos materiais, diminuindo drasticamente, e da perigosa deterioração dos filmes de nitrato e de acetato. Apenas com o retorno da equipe especializada será possível avaliar as extensões das perdas e danos para que então as atividades de conservação sejam retomadas.

O acervo que estava armazenado na Vila Leopoldina, apesar de em menor número, possuía igual relevância e importância ao da Vila Clementino. Abaixo listamos alguns dos materiais possivelmente perdidos ou afetados no incêndio de 29 de julho de 2021:
– Do acervo documental: grande parte dos arquivos de órgãos extintos do audiovisual como parte do Arquivo Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A. (1969 – 1990), parte do Arquivo do Instituto Nacional do Cinema – INC (1966 – 1975) e Concine – Conselho Nacional de Cinema (1976 – 1990), além de documentos de arquivo ainda em processo de incorporação. Para evitar que novas enchentes atingissem o acervo, parte desses materiais foi transferida do térreo para os depósitos climatizados no primeiro andar, principal área atingida pelo incêndio. Tal medida ocorreu após uma grave enchente em fevereiro de 2020. Parte do acervo de documentos oriundos do arquivo Tempo Glauber, do Rio de Janeiro, inclusive duplicatas da biblioteca de Glauber Rocha e documentos da própria instituição.
– Do acervo audiovisual: parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes, de cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35mm. Matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, filmes domésticos, além de elementos complementares de matrizes de longas-metragens, todos estes potencialmente únicos. Essa parcela do acervo já havia sido parcialmente afetada pela enchente recente. Parte do acervo da ECA/USP – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo da produção discente em 16mm e 35mm. Parte do acervo de vídeo do jornalista Goulart de Andrade.
– Do acervo de equipamentos e mobiliário de cinema, fotografia e processamento laboratorial: além do seu valor museológico, muitos desses objetos eram fundamentais para consertos de equipamentos em uso corrente, pois, para exibir ou mesmo duplicar materiais em película ou vídeo, é necessário maquinário já obsoleto e sem reposição no mercado.

O incêndio da noite de ontem é mais um motivo pelo qual não podemos esperar para dar um basta à política de terra arrasada e de apagamento da memória nacional! Estamos em luto, pela perda de mais de meio milhão de brasileiros, e agora pela perda de parte da nossa história. Incêndio na Cinemateca Brasileira em 2016, no Museu Nacional em 2018 e, novamente, na Cinemateca em 2021. Além de todas as mortes evitáveis, nossa história vem sendo continuamente 2/3 extirpada – como um projeto. Infelizmente, perdemos mais uma parte do patrimônio histórico cultural brasileiro.

A Cinemateca Brasileira não pode ficar à mercê de novas intempéries. A gestão da instituição por meio de terceirização via Organização Social, da forma como foi realizada, mostrou como pode ser frágil essa relação, e que tal modelo não dá conta da complexidade de um órgão cultural desse porte. O edital prometido pelo Governo Federal, sem debate, ferramentas de transparência, a participação da população, de pessoas da área de patrimônio cultural e, principalmente, do coletivo dos ex-trabalhadores da instituição, não será a solução. Alerta-se ainda que o orçamento anunciado é significativamente inferior ao necessário. É preciso estabilidade e garantia de equipe técnica a longo prazo, oferecendo à instituição um orçamento compatível com os necessários serviços de preservação e difusão do audiovisual brasileiro.

Sem trabalhadores não se preservam acervos!

Trabalhadores da Cinemateca Brasileira
São Paulo, 30 de julho de 2021