“Os povos indígenas procuraram fazer todo o esforço possível diante da pandemia: o isolamento, permanecer nos seus territórios. Mas veja, por exemplo, o caso do povo ianomâmi, com os postos de saúde fechados há mais de dois meses, no meio da selva amazônica, e aquela população jogada, sem eira e sem beira, é o retrato de um país que não tem um mínimo de sensibilidade diante do sofrimento dos povos originários.”

Com tristeza e indignação, dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho e presidente do Conselho Indigenista Missionário, fala ao TUTAMÉIA sobre a situação da população de Rondônia, em geral, durante a pandemia, e dos povos indígenas em particular, eles que são mais vulneráveis à pandemia.

“A Covid entrou também por conta disso, pela falta de atendimento nos territórios. Além disso, os invasores, madeireiros, garimpeiros, não fizeram quarentena. Foram ocupando, devastando. Aqui dentro do município de Porto Velho, a poucos quilômetros da cidade, onde a terra indígena karipuna, demarcada, homologada, registrada, está sendo ocupado com velocidade inacreditável. Por mais que o Ministério Público tem denuncie, por mais que a população karipuna, que é um grupo pequeno, tem denunciado, parece que nada acontece. Os invasores são tratados os discursos do governo autorizam que façam isso.”

“A expectativa de vacinação das comunidades também vai sendo frustrada: “Em Rondônia, com mais de 15 mil indígenas nas comunidades, chegaram duas mil e poucas vacinas. Sem contar que hoje temos quase 50% da população indígena vivendo contexto urbano, e aí a declaração preconceituosa do senhor ministro, discriminatória, que vai contra a Constituição brasileira, que vai contra os próprios órgãos internacionais, negando esse direito ao povos indígenas em contexto urbano. Hoje uma grande parte vive nas cidades porque foram expulsos, arrancados de suas terras tradicionais, e o governo brasileiro, o estado brasileiro se nega a reconhecer esses direitos”, diz dom Roque, resumindo: “É um governo que tem feito de tudo para impedir que os povos indígenas tenham os seus direitos”. (Clique no vídeo do alto da página para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

E acrescenta: “Tudo isso revela uma política extremamente equivocada em relação aos povos originários, uma política equivocada em relação aos direitos humanos, aos direitos dos pobres deste país. Estamos vivendo uma situação de uma exclusão sem precedentes, a fome está ali. Hoje temos os números de mortos pela covid 19, amanhã vai ser a fome”.

GENOCÍDIO

Essa situação não é obra do acaso ou das circunstâncias, como afirma o presidente do Cimi: “Há todo um jogo de negar, de criar artimanhas. Nesta semana, a Funai cria outros mecanismos, de maneira ardilosa, para criar cada vez mais dificuldades para o reconhecimento de quem é indígena ou não. Sempre com o argumento de negar direitos, de impedir acesso às políticas públicas –as poucas que ainda restam e a que os povos indígenas têm acesso. Há uma engrenagem diabólica dentro desse atual governo, que vem alimentando tudo o quanto é caminho para negar os direitos dos povos indígenas”.

A “engrenagem diabólica”, como o religioso define essas articulações é movida por várias forças: “Além das cercas, além do agronegócio ocupando todas as terras possíveis e impossíveis, temos também a morosidade do sistema judiciário, que a situação vai se arrastando por anos, décadas, no julgamento de situação tão gritante. E vejam o número de projetos de lei e emendas constitucionais que temos no nosso Congresso, nos últimos tempos, contra os direitos dos povos indígenas. E quando vamos falar no executivo, ali é brincadeira! Um órgão como a Funai, que deveria cuidar, acompanhar, estar do lado dos direitos dos povos indígenas, tem se colocado contra e trabalhado contra os povos indígenas, com medidas cada vez mais tristes, seja o reconhecimento de propriedades dentro de terras indígenas. Depois vêm os interesses do dinheiro nacional e internacional, que não têm limites. Apostam tudo para tirar a única coisa que os povos indígenas têm, as suas terras tradicionais. Tirando isso, não se tem mais nada, é a morte. Estamos vivendo, como denunciou há dois a promotora aqui em Rondônia, um tempo de genocídio permanente em relação aos povos indígenas”.

Dom Roque prossegue:

“Tudo o que está acontecendo tem sido caminho de morte para os povos indígenas. A saúde tem sido caminho de desvios, de corrupção e de não atendimento nas ações básicas junto às comunidades indígenas. Estamos voltando ao caminho do período da ditadura militar, quando se forçou a integração nacional por desaparecimento dos povos indígenas. Essa tem sido a tese do governo, da negação desses povos. Acham que eles precisam se integrar ao mercado, que eles precisam ser consumidores, negando o direito da autodeterminação deles, que a Constituição estabelece. Estamos vendo situações de ocupação das terras indígenas cada vez com mais intensidade. Os povos livres, chamados de pouco contato, já não têm mais para onde ir.”

NEGACIONISMO E CHARLATANISMO

Nas cidades, especialmente agora durante a pandemia, essa política também aparece, como dia o religioso ao falar da situação da população de Porto Velho e de Rondônia frente à disseminação da covid 19 na região.

“O que nós vivemos em Rondônia é consequência daquilo que se vem trabalhando desde o início da pandemia: nunca se levou a sério. Os números de mortos e de infectados, apesar de relevantes, não dizem tudo, porque a testagem é baixa. Não revelam, então, o real retrato do que nós estamos passando. Há poucos dias, o Ministério Público de Rondônia abre uma queixa contra o governo por escamotear os dados sobre a doença, o que revela sobretudo uma prática negacionista, de tentar levar no grito toda essa realidade.”

O governo fez tudo ao contrário do recomendado pelas organizações médicas, lembra dom Roque: “Não se apostou naquilo que a ciência procurou apontar como caminho viável para o enfrentamento da covid 19; consequentemente, na região norte se revela esse retrato tão sofrido da desigualdade social –que é tão forte em todo país, mas vista de maneira mais evidente no norte, muito mais palpável, tendo em vista a falta de estrutura mínima, básica. O SUS, que é uma grande conquista que tivemos no Brasil, está sendo cada vez mais sucateado intencionalmente, e consequentemente os pobres ficam sem eira e sem beira”.

As coisas pioram: “No meio desse sofrimento, continuamos com muita gente alimentando o charlatanismo, alimentando essa tese, sobretudo propagada pela própria presidência da República, de que a doença é algo assim insignificante, passageiro. Há ainda a negação da ciência. A grande maioria da população está com medo, e não vê uma perspectiva mínima de atendimento básico diante da doença. É uma mentalidade que perpassou o país inteiro, desses que acham que é uma gripezinha, que só pega em gente que não tem coragem, é uma tese que tem se manifestado, e o pior é que muita gente até com qualificação universitária fica alimentando esse tipo de prática, desmotivando a população para o enfrentamento mais adequado da doença.”

MENSAGEM DE FRANCISCO

Em meio a essas dificuldades, a igreja de Porto Velho tem procurado atuar para minorar o sofrimento da população mais vulnerável, como os moradores de rua. Além de distribuição de alimentos, diz dom Roque, voluntários vêm atuando para tentar proteger um pouco mais essa comunidade –dando banho e oferecendo roupa seca, por exemplo.

As ações de solidariedade se combinam, no caso com religioso, com sua militância em defesa dos povos indígenas e da população da Amazônia como um todo, procurando ajudar, como ele a semear um pouco de esperança.

“Nós precisamos alimentar e continuar com os sonhos, nesta Terra Sem Males, e sonhar que é possível nós vivermos nesta região e que haja o respeito às tradições dos povos. Tudo o que se pensa para a Amazônia é pensado de fora: a Amazônia como um celeiro de recursos naturais, pensando que não tem fim. Mas, apesar da flexibilização da legislação que este governo tem levado, apesar de fechar os olhos diante das queimadas, das invasões e da negação dos direitos dos povos originários, o grito continua vivo. Alguma coisa vai surgir. Precisamos acalentar essa semente que vai surgir, porque não podemos pensar que a solução vem apenas pelo caminho da economia pensada para destruir a riqueza natural, que é um direito de todos, para concentrar a riqueza nas mãos de poucos.”

Essa é também a mensagem do sínodo da Amazônia, que foi coroado, em fevereiro do ano passado, com a carta pós-sinodal do papa Francisco, intitulada “Querida Amazônia e lembrada por dom Roque na entrevista ao TUTAMÉIA.

No documento, lembra dom Roque, o papa fala de sonhos. O sonho social –o pão que está na mesa deve ser para todos, não apenas para alguns—e a o sonho cultural, o respeito ao pluralismo, são alguns deles, como mostra o seguinte trecho da mensagem do papa Francisco:

“Sonho com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida. Sonho com uma Amazônia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana. Sonho com uma Amazônia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas. Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazônia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos”.

Embalado nessa exortação, dom Roque diz: “Acho que os ventos começam a mudar de direção, em relação também ao presidente e ao governo do estado. Acho que a casa está caindo para muita gente, e as pessoas começam a perceber que nem tudo aquilo que brilha é ouro. Penso que as coisas começam a mudar. Continuamos acalentando sonhos e a esperança de que um outro Brasil é possível. Vai ser um caminho desafiador”.