“Muitos analistas estão dizendo que claramente essa guerra vai funcionar como uma espécie de marco de um novo momento da história do imperialismo, como eu, marxista, diria. Porque os EUA estão numa situação em que eles não têm muito como ganhar em todos os sentidos. Não sei se tem alguma boa saída para a hegemonia americana nesse embrulho que se formou. Mesmo que houver um ganho militar, que obrigue o Putin a recuar por alguma razão, isso vai estar aproximando China e Rússia. Já está. Estrategicamente estão se unindo. Aí fica complicado porque é a segunda maior economia do mundo, que já, já passa a economia americana, com a economia que mais tem armamento nuclear. Fica uma situação difícil para os EUA. Você aproxima esses dois gigantes e cria um problema claro para a liderança americana do ponto de vista geopolítico e do ponto de vista econômico. Porque aí o dólar fica questionado como moeda mundial, não há dúvida”.

A análise é da economista Leda Paulani ao TUTAMÉIA. Nesta entrevista, ela avalia os impactos na guerra na economia mundial e no Brasil, trata das diferenças entre o boom de commodities dos anos 2000 e o atual, pondera sobre as possibilidades de as economias nacionais enfrentarem a crise e observa que o atual momento tem elementos (por razões distintas) que lembram os anos 1970: estagflação, choque do petróleo e questionamento do dólar como reserva de valor mundial (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Doutora pela USP, onde é livre docente, Leda foi secretária de Planejamento, Orçamento e Gestão na gestão de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo. Autora de “Brasil Delivery” (Boitempo, 2008), ela traça os cenários possível para os desdobramentos do conflito na Ucrânia:

“Digamos que os EUA consigam impor sanções tão brutais à Rússia que o Putin recue. Eu não acredito que isso aconteça. Mas, se isso vier a acontecer, com certeza os EUA terão, nesse meio tempo, propiciado o abraço da China com a Rússia. Que um sujeito chamado Henry Kissinger, lá nos anos 1970, percebeu e disse: ‘Nada disso, vamos botar a nossa cunha ali’. Atiçou um pouco as rivalidades, que também existem entre China e Rússia. E os EUA quase se puseram a salvo. Se os EUA ganham a guerra, no sentido de que o Putin recue, ao mesmo tempo eles vão estar dando um poder descomunal para a China. Porque é evidente que aí a Rússia, reconhecendo a sua debilidade, vai se colocar sob o abrigo da China. E, se o Putin ganha a guerra, também impõe uma derrota à Otan. Não sei se tem alguma boa saída para a hegemonia americana nesse embrulho que se formou”.

“Mesmo que houver um ganho militar, que obrigue o Putin a recuar por alguma razão, isso vai estar aproximando China e Rússia. As sanções econômicas já estão aproximando Rússia e China. Putin se preparou para essa possibilidade. Ele sabia que teria abrigo, tem outros sistemas internacionais de compensação, não é só o Swift. Se Putin estabelece parcerias comerciais fundamentalmente com a China, ou dos países do entorno da China, por que ele precisa do Swift?”.

“Se os EUA sobem os juros, eles podem conter um pouco a desvalorização do dólar, mas hoje não tem como desvincular o que acontece com a moeda americana da questão geopolítica. Tem também um problema de inflação, que afeta o mundo todo, mas que é muito complicado para a moeda que é, até prova em contrário, o meio de pagamento internacional. Tem no horizonte um questionamento do dólar. Agora, para onde vamos é que é difícil responder. Tem em pauta o questionamento do dólar a médio prazo”.

PANDEMIA, GUERRA E CRISE ESTRUTURAL

Ao TUTAMÉIA, Leda expõe o panorama de fundo da crise atual:

“Hoje a gente está associando uma crise de demanda estrutural que tem no capitalismo desde os anos 1970, uma crise de sobreacumulação de capital que não foi resolvida. Foi mitigada com o neoliberalismo e depois com o próprio crescimento chinês, mas nunca foi resolvida de fato. Depois da crise internacional de 2008, o capitalismo começou a crescer ainda menos”.

“Essa é uma crise de escassez de demanda efetiva crônica. A isso se agrega a pandemia, que aprofunda mais isso. A pandemia traz consequências do ponto de vista da oferta porque desestrutura várias cadeias produtivas, as estruturas logísticas. Dois anos de pandemia pararam praticamente a economia mundial, ainda que as vacinas tenham chegado mais rápido do que se imaginava”.

Sobre o atual boom de commodities, ela diz:

“Esse é um boom de commodities que não vem pelo crescimento. É boom de commodities que vem pela bagunça, pela balbúrdia em que ficou a economia mundial. É a primeira vez que o mundo está podendo experimentar isso numa economia já muito globalizada, interconectada. Inclusive essa questão das sanções econômicas à Rússia hoje têm um limite. Se não, você afeta a economia mundial. É diferente de fazer sanções nos anos 1960, quando não havia a interconexão entre essas economias, com capitais transnacionais que atravessam o planeta, produzem coisas com um pedaço em cada lugar e têm parcerias de logística aqui, de tecnologia acolá, de produção não sei aonde, busca mão de obra onde for mais barato. No meio disso tudo você tem pandemia e guerra e uma crise estrutural do capitalismo por baixo. E as causas do boom de commodities atual são quase opostas às do boom que a gente teve no começo dos anos 2000. Será que isso trará para o Brasil os mesmos bons frutos naquele momento? Não sabemos”.