O governo não tem uma estratégia para o enfrentamento da Covid, mas está empenhado em fabricar um plano para expandir o setor privado na saúde às custas do SUS. Para isso, lançou uma consulta pública, que vai até o dia 18 de maio, sobre uma “Política Nacional de Saúde Suplementar Para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19”.
O Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde da UFRJ avaliaram o movimento e concluíram:
“Trata-se de um ataque ao bom senso, um desrespeito ao atual momento catastrófico da vida no país. No lugar de medidas para fortalecer o SUS e reduzir mortes por Covid, o governo decidiu atender velhas demandas do setor privado assistencial e lançar uma política para o crescimento do mercado dos planos de saúde. Resultado de reunião entre autoridades de diversos ministérios, o documento, além de propositalmente confuso, é nitidamente favorável aos interesses privados”.
Diz mais:
“A proposta enumera platitudes como “dignidade”, “vulnerabilidade”, “transparência” e “excelência” e ignora totalmente o princípio essencial, inscrito na Constituição de 1988, do direito universal a saúde. A “integração com o SUS” sugerida não é um princípio, mas a tentativa de jogar a saúde pública no precipício. O SUS, está previsto em lei, é o instrumento para efetivação de direitos, e não um anteparo de negócios e um resseguro de transações empresariais”.
Ao TUTAMÉIA, a médica Ligia Bahia, uma das autoras do trabalho, analisa mais essa tentativa de privatização do SUS, comenta a trajetória da pandemia, examina os rumos da CPI e fala da necessidade de o país discutir formas de reparação para o desastre que o Brasil vive. “É preciso cobrar responsabilidades. Esperamos que haja punição dos responsáveis e reparação, para que não ocorra mais”, declara (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
O documento conclui dizendo: “A proposta ‘Política Nacional de Saúde Suplementar Para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19´ precisa ser sustada. Não é mais admissível que expedientes empresariais na saúde, apoiados por sub-reptícias alianças políticas, se tornem uma saga na história do país. As vias tortas têm sido as preferenciais para um grupo de empresários da saúde parasitas de recursos públicos, extremistas na defesa de seus interesses privados. Essa consulta pública é mais uma peça do acervo recente das tentativas de mudar as regras do jogo, com diminuição de direitos minimamente assegurados e nítidos prejuízos adicionais ao sistema de saúde e aos milhões de cidadãos vinculados à assistência médica suplementar”.
PRESSÃO DE FUNDOS INTERNACIONAIS NOS PLANOS
Professora da UFRJ, Ligia diz que há uma “tentativa dos empresários de passar por baixo do pano –e por cima do pano—a ideia que têm de ampliar o mercado de saúde complementar”. Ressalta: “O setor privado vem se expandindo enormemente. Tem conseguido aprovar aumentos de preços dos planos de saúde em plena pandemia. E nem cobertura para os testes eles deram!”.
A estratégia empresarial é conhecida. Planos que aparentemente custam pouco, mas que, na verdade, fundamentalmente usam a estrutura do SUS, que é pública, gratuita e universal.
“A pessoa pensa que está entrando [no atendimento de saúde] pelo plano, mas, na realidade, é SUS. Pagar pelo que já se tem é bastante. Queriam vender um plano por 50 reais mensais. Mas 50 reais é muito para pagar pelo que você já tem direito. Já existe isso. Planos que colocam hospitais públicos como se fossem da sua rede”, conta Ligia.
E qual a razão desse interesse privado agora?
“Querem fazer isso oficialmente. Porque agora eles não podem errar muito. Tem muito fundo internacional entrando [no mercado brasileiro]. Eles têm que legitimar isso, porque os fundos internacionais precisam de estabilidade jurídica. É preciso uma norma x que diga que eles podem fazer isso, que é assim que é no Brasil. No Brasil o plano não cobre nada, ele só cobra. Tem direito a não dar cobertura nenhuma porque tem SUS. É como se fosse venda de ar”.
Ela segue:
“Tem idosos que estão pendurados no empréstimo consignado para pagar o plano. O que é muito cruel, porque o plano aumenta muito acima da inflação, da massa salarial, de qualquer indicador da economia”.
VOUCHER ANUAL DE GUEDES NÃO PAGA UM EXAME NO EINSTEIN
A médica condena a atuação do governo na pandemia e ataca declarações do ministro Paulo Guedes contra o SUS. Sem maiores explicações, ele acenou com um hipotético, vago e irrealizável “voucher” na saúde, em lugar do atendimento público.
“O voucher de um ano não daria para pagar uma tomografia computadorizada no Einstein. Não é internação. É um exame. [a proposta] É um deboche. Ele não tem a menor noção da segregação que existe no sistema de saúde no Brasil. Temos o atendimento de ponta que Paulo Gustavo recebeu e tem gente morrendo nas UPAs. Será que o ministro não vê isso? A desigualdade é absurda, por isso que temos que ter o SUS. Sem ele, essa situação piora”, diz.
Segue a professora:
“Thomas Robbes (1588-1679) disse que o contrato social é necessário porque a vida sem contrato social é curta. Então, a gente precisa do contrato social porque a vida não pode ser curta. Essa gente que está no governo nem de contrato social eles são a favor. Eles são pré-contrato social. A ideia é de um Estado que mata. Não é um Estado que protege a vida. Estamos diante de uma estratégia de destruição muito grande. E a gente nunca se preparou para isso. A gente não sabe enfrentar isso. A gente não sabe deter uma intenção tão grande de destruir mesmo. Destruir o SUS, a democracia, a ciência”.
OCEANO DE LÁGRIMAS E INCÊNDIOS MÚLTIPLOS
Para Ligia, vivemos “um oceano de lágrimas”. Ela percorre a evolução dos números da doença no país.
“Tivemos um platô muito alto no ano passado. No início deste ano, triplicamos aquele platô e agora, novamente, um número muito elevado. A gente nunca saiu dos platôs. Nunca tivemos as curvas. É o paredão. Não é uma onda que vai e volta. A metáfora da onda talvez não seja adequada para mostrar o que está acontecendo no Brasil. Temos um padrão permanente de altíssimas taxas de transmissão. E há simultaneidade no país inteiro. É como se a gente tivesse um incêndio que está ocorrendo em todos os lugares ao mesmo tempo”.
Uma esperança, para a médica, é o trabalho da CPI da pandemia no Senado. “Congresso é um local adequado para debater responsabilidades e tratar propostas de saída. Qualquer vida que possa ser salva tem que ser salva. Que a CPI exista e que a gente tenha mais teste, máscara, acesso à internet, auxílio emergencial, campanha para as pessoas não passarem fome”.
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