Vivemos um momento de transição no país e no mundo. São muitas crises ao mesmo tempo. No Brasil, não é só a crise econômica. “Já teríamos saído dela, se não tivéssemos uma crise política que beira a institucional”, afirma a economista e socióloga Tania Bacelar em entrevista ao TUTAMÉIA.
Para ela, no curto prazo, “vamos ter dificuldade de desatar esse nó”. Mas, a médio e longo prazo, ela se diz otimista: “O Brasil tem tanto potencial que não consigo ser pessimista [com o futuro]”. Na conversa, ela tratou de desenvolvimento, de indústria, de financeirização, da vida nas cidades, de demografia.
Professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco e moradora do Recife, Bacelar esteve em São Paulo, em maio, para participar do Fórum Nacional Br Cidades, uma iniciativa para debater políticas urbanas liderada pela Frente Brasil Popular e uma série de entidades. O pouco que circulou pela cidade a deixou chocada: miséria nas ruas, famílias inteiras dormindo nas calçadas.
“Em São Paulo, uma potência econômica tão forte, a miséria choca muito. A pujança da economia não devia permitir isso. Aqui tem o contraste, a carga de violência subjetiva que choca”, diz.
EXPORTAÇÃO DE CONHECIMENTO PERDIDA
Bacelar observa com preocupação a “desnacionalização bastante forte” que ocorre na economia. Fora o sistema bancário, indústria e serviços estão nesse processo. Saúde e educação são os setores onde agora esse movimento é bem intenso. “Tem uma tendência de privatizar desnacionalizando. Muitos países estão combinando melhor isso”, opina.
Para a economista, agentes nacionais são mais colados com o país. Quando a empresa é nacional, lembra, o acionista vive aqui, vota aqui, seus filhos estudam aqui. O que significa uma “tendência a dialogar mais com os interesses do país”.
A empresa nacional, assinala, está perdendo espaço no país. “Nessa dinâmica da privatização com desnacionalização no Brasil, não são as nossas empresas que estão se internacionalizando, como é o caso da China. Aqui é o contrário”. Ela enfatiza o desmonte das empreiteiras nacionais –promovido a partir da Lava Jato—tem efeitos perversos para o país. “Elas faziam o país exportar conhecimento, projetos de engenharia, serviços qualificados. É um segmento que se perdeu nessa crise e que é muito difícil de recuperar no curto prazo”.
INDÚSTRIA SEGUE IMPORTANTE
Bacelar, especializada em políticas regionais de desenvolvimento, diz que as metrópoles de hoje são filhas do projeto de industrialização brasileiro no século 20. Naquele período, “teve democracia, teve ditadura, teve de tudo. Tinha um eixo: deixar de ser um país agrícola para ser um pais industrial. Hoje se discute o que é ser industrial no século 21”.
Ela fala das mudanças estruturais em curso. Mas anota: “A indústria de transformação continua sendo importante, e a nossa está perdendo consistência. É parte da nossa crise. Essa atividade produtiva se incorporou à vida das pessoas. Como eu vou negar a indústria de transformação se a gente vive do que ela produz? Como é que eu explico a China sem a indústria de transformação? A China é hoje a indústria manufatureira do mundo, com metade da produção industrial manufatureira mundial. E a crise norte-americana é a redescoberta de que isso era importante, que eles não tinham de ter deixado sair um pedaço tão grande [da indústria do país]”.
Assim, avalia, “a eleição de Trump é resultado da frustração de um pedaço da sociedade americana que perdeu a oportunidade. A indústria do aço perdeu; agora estão taxando”. De qualquer forma, o peso relativo da indústria está mudando. Há novas atividades. Um dos maiores símbolos da indústria no século 20, o automóvel, terá outro papel neste século.
ELITE EM MIAMI; AGRICULTORES NO BRASIL
Bacelar fala das diversas crises entremeadas hoje. Ao tratar das saídas, ressalta a diversidade da natureza no Brasil e o mosaico humano que compõe a nação como valiosos patrimônios, indispensáveis na travessia para o futuro. Identifica, porém, percepções diferentes sobre essa rica realidade. Dá um exemplo:
“A valorização da agricultura familiar não é uma unanimidade no Brasil, como é na França”, afirma. Cita o mestre Celso Furtado –especialmente o livro “Brasil, a Construção Interrompida” (Paz e Terra, 1992), que ajuda a entender a dinâmica nacional. “Como é difícil consolidar o país como nação, tem a herança da escravidão, da colonização; é uma carga que se carrega. Esse conceito de país que a gente quer é muito difícil. Parte da crise é essa angustia, essa perplexidade”.
E segue: “Em parte da elite tem gente querendo morar em Miami. Estão desistindo do Brasil? Estão preferindo morar fora do Brasil? Tem uma parte da elite brasileira que está nessa. E aí? A gente desiste do Brasil? Quando eu vou [falar] para os produtores rurais, eles não podem desistir do Brasil; não dá para morar em Miami. Eles estão querendo construir o Brasil, recolocar um projeto de Brasil que dialogue com as mudanças”.
Mais: “Em parte, a crise é isto: o Brasil precisa se reposicionar no mundo que está mudando. Além dos problemas conjunturais, temos desafios estruturais. Demograficamente o Brasil do século 21 é muito diferente do do século 20. Minha vó morreu com 35 anos, e eu tenho 73. Taxa de esperança de vida melhorou; a taxa de natalidade embicou [para baixo}. Essa minha vó que morreu com 35 teve oito filhos; eu tive três, e meus filhos têm um por enquanto. Vamos ter uma sociedade de idosos do tamanho da de jovens daqui a duas décadas. Um Brasil totalmente diferente”.
LULA DEU AULA DE POLÍTICA
Bacelar fala do avanço das cidades médias no país nos últimos tempos. Entre outros pontos, chama a atenção para a importância da disseminação do ensino superior pelo interior para dinamizar esses centros. As universidades trazem investimentos em muitas áreas diferentes –dos barzinhos à construção civil.
A economista finaliza a conversa falando de dois líderes políticos: Miguel Arraes e Lula. Com Arraes, ela trabalhou diretamente como secretária. Desse convívio, lembra de uma frase logo do primeiro encontro. “Nós ganhamos o governo, mas não ganhamos o poder”, advertiu o governador pernambucano em audiência com a jovem economista.
“Penso muito nessa frase hoje”, diz Bacelar. Talvez ela explique parte da situação que o país vive hoje.
Sobre Lula, ela diz que ficou impressionada como a “aula de política” que o líder deu no momento da decretação de sua prisão. “ Ele cumpriu o legal, respeitou a institucionalidade, mas construiu a sua entrega. Ele não foi pautado; ele pautou, se entregou quando quis. Cumpriu [o rito legal] colado nos movimentos sociais. A fotografia que saiu foi a que ele construiu. Lula foi protagonista da prisão dele. Ele está ganhando espaço político. É um preso que tem um peso político muito forte. É parte do nosso impasse”.
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