“Se pode traçar uma cruz. A linha vertical é a da influência norte-americana. Mas, na horizontal, o Peru está em frente à China. Tens no leste peruano o Brasil e, no oeste peruano, a China. O desespero dos EUA é que isso vai assegurar uma parte da Rota da Seda, comunicando Brasil com China. Nada menos. Isso para os EUA é inaceitável”.

Essa é a avaliação de Héctor Béjar, ex-ministro das Relações Exteriores do Peru, em entrevista exclusiva ao TUTAMÉIA em que analisa o contexto do golpe que derrubou o presidente eleito Pedro Castillo e deu poder a Dina Boluarte, uma explícita aliada dos Estados Unidos no país andino.

Béjar segue:

“A tragédia dos EUA é que eles não têm nada a oferecer. Não podem oferecer investimentos e já não são um mercado atrativo para o Peru. A China é muito mais, pois compra em grandes quantidades. Os EUA compram apenas os produtos da costa peruana. Então, os EUA só podem responder militarmente. E isso também é um risco: que o Peru seja ocupado totalmente pelos EUA. Agora está semiocupado [mil militares norte-americanos estão no país]. Desde muito tempo eles ocupam os cérebros dos políticos. Os políticos pensam em inglês”.

Na visão de Béjar, é a disputa com a China que faz os Estados Unidos mirarem o Peru neste momento.

“Não tanto pelos minerais, mas pela posição estratégica do Peru, país que já se preparou para a passagem dos produtos brasileiros para a China. Fundamentalmente, minerais, soja, carnes, que atravessam três vias transamazônicas que atravessam o território peruano. Uma delas chega até o porto de Chancay (60 km ao norte de Lima), propriedade chinesa, que é o porto maior da costa sul do Pacífico e que estará pronto no próximo ano”.

Sociólogo, artista plástico e escritor, ele fala do golpe que derrubou Pedro Castillo em dezembro de 2022 e levou ao poder um regime ditatorial abertamente pró-americano. Ele classifica a enorme reação popular à deposição como “o acontecimento mais importante em 200 anos de história republicana no Peru”.

Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, concedida em Santiago do Chile no dia do seu aniversário de 88 anos (2 de setembro de 2023), Béjar relembra como acompanhou o golpe no Chile em 1973 (ele atuava com Velasco Alvarado, então presidente peruano).

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Trata da ação das esquerdas no continente e de bases para um projeto de mudanças radicais. Para ele, “as esquerdas latino-americanas vão primando pelo critério de que, para manter-se no poder, não há que mover demasiado as águas”.

Relembra também os tempos de luta armada, quando foi treinado nos grupos organizados por Che Guevara. “A parte mais emocionante da minha vida foi a guerrilha. Não pela própria guerrilha, mas pela qualidade de gente popular que conheci”.

O golpe parlamentar de dezembro do ano passado colocou Castillo na prisão e desencadeou ondas de protestos pelo país inteiro com marchas, greves e bloqueios, que agora estão em refluxo. A repressão às manifestações foi violenta: pelo menos 70 pessoas morreram.

“Desde dezembro do ano passado, os que saíram nas manifestações não são os partidos políticos; são comunidades inteiras que se levantaram com seus líderes. Uma coisa é capturar, prender um líder político; outra coisa é enfrentar uma comunidade. Mataram 70 pessoas. Mas não vão poder matar milhões de camponeses. Os aymaras são muito mais que 70 e não cederam e continuam. Não vão às ruas porque não são tontos a sair para que os matem. Mas isso não quer dizer que tenham sido ganhos pelo sistema”, afirma.

“MELHOR ALUNO DOS EUA”

Béjar segue:

“O governo atual peruano é um governo abertamente ditatorial. Se associou completamente aos EUA. Publicamente. Eles se orgulham em dizer que são o melhor aluno dos EUA na América do Sul”.

“A direita peruana é tão torpe, tão ignorante, tão incapaz que fez mal a destituição de Castillo. Rompeu com todos os princípios legais, todas as leis, todos os regulamentos. Violaram a constituição, e as regras do congresso. Fizeram um golpe ilegal. Castillo está preso ilegalmente e é legalmente o presidente do Peru”.

Autor de “A História do Peru para os Descontentes”, Béjar percorre a história das insurreições latino-americanas. Depois de falar da onda que teve como protagonistas Hugo Chávez e Kirchner, ele avalia que as outras ondas foram cada vez mais moderadas.

“As esquerdas latino-americanas vão primando pelo critério de que, para manter-se no poder, não há que mover demasiado as águas. Então se trata somente de se manter no poder diminuindo as reformas estruturais ao mínimo ou quase fazendo-as desaparecer”, diz.

“É o caso da Argentina, onde agora há uma falta de definição entre o governo argentino e a oligarquia argentina, que segue intacta. Não estou dizendo que a oligarquia argentina tenha que desaparecer.  Porque é um sistema oligárquico por obsessão. O que acontece é que esses super ricos não aportam à sociedade uma riqueza similar à que eles extraem do país. Por outro lado, com o câmbio climático, eles expandem os cultivos e isso é o pior que pode haver em um país. E no planeta”.

 

Segue Béjar:

“As esquerdas latino-americanas, quando chegam ao governo, não se atrevem a tocar porque se sentem menos poderosas que o poder dessas oligarquias, que financiam os exércitos, os meios de comunicação, os bancos e está ligada a um tecido poderoso. Enquanto esse tecido permaneça, a América Latina não vai poder realizar a justiça social”.

O ex-ministro destaca a importância da mudança geopolítica nesse quadro:

“Parte de nossos países não poderá fazer um movimento libertador importante sem que haja uma situação favorável. A presença comercial chinesa, não necessariamente a presença política, e também a presença comercial russa são elementos de contrapeso ao poder norte-americano. Num mundo pluripolar se abrem possibilidades para mudanças estratégicas de maior dimensão na América Latina”.