“Está na hora de o governo Lula acordar para esse mar de sangue que as polícias estão provocando no Brasil. Não é possível a gente continuar convivendo com isso. A gente teve de conviver com isso durante os quatro anos do governo Bolsonaro. Nós não podemos continuar convivendo com isso num governo que a duras penas a gente conseguiu eleger”.

É o que afirma a socióloga Julita Lemgruber ao TUTAMÉIA ao analisar a matança promovida por policias em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia nos últimos dias. Somente nesses três Estados, em menos de uma semana, 45 pessoas foram mortas por policiais.

Nas palavras de Julita:

“A gente olha para o quadro do Brasil e claro que chama a atenção essa quantidade enorme de mortes provocadas por essas ações recentes da polícia militar em São Paulo, que acabaram por provocar chacinas.

“O que o governador diz? Ele diz que são danos colaterais. É como se fosse natural que, para garantir a segurança de uma população, você tivesse de matar pessoas.

“A sociedade não pode aceitar isso. O fato de nós buscarmos viver em segurança não quer dizer que, para atingir isso, a gente tenha de matar pessoas. Matar às dezenas, às centenas, aos milhares.

“O interessante é que a gente olha para São Paulo, e diz, ah, não o Tarcísio de Freitas é um apoiador do Bolsonaro. A gente olha para o Rio de Janeiro, o Claudio Castro é um apoiador do Bolsonaro. Olha para a Bahia! A Bahia tem um governo do PT, há muitos anos. E a Bahia hoje é o segundo estado onde a polícia mais mata.

“Em que mundo nós vivemos? Em que apoiadores do Bolsonaro aplaudem quando a polícia mata. Mas um governador eleito como representante do Partido dos Trabalhadores, esse cara vai dizer o quê, agora? Ele está muito pouco provocado pela mídia. Ele tem de ser mais provocado. E, além disso, o governo Lula tem de ser provocado.

“Não é possível. Nós escolhemos um governo, um presidente diferente do que o que tivemos nos últimos quatro anos”.

Julita foi diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, ouvidora da polícia e coordena o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. Ela fala ao TUTAMÉIA a propósito do lançamento da pesquisa “Saúde da Linha de Tiro”, que avalia o impacto da guerra às drogas na saúde dos moradores de favelas do Rio de Janeiro.

Para Julita, Lula precisa agir agora:

“Neste momento, o governo Lula deveria estar tomando providências. Hoje, a gente não vê nem o Ministério Público, que tem o dever constitucional de fazer controle externo das polícias. Onde é que está o MP nesses três Estados? A gente não vê o MP tomar qualquer providência e a gente não vê o governo Lula tomar qualquer providência.

“O governo Lula, na sua terceira versão, está se comportando exatamente como se comportou nas outras vezes. É muito fácil para o presidente dizer: ‘Olha, segurança pública é problema dos governadores. As polícias são estaduais, os governadores é que cuidem disso. Tira essa responsabilidade do meu ombro’. Infelizmente, o governo Lula sempre se comportou dessa maneira, e não está se comportando diferente”.

Ela lembra:

“No início do governo Lula, o ministro da Justiça, Flavio Dino, esteve aqui no Rio visitando a favela da Maré, dizendo: ‘Olha, estamos aqui, estamos presentes, e nós não vamos compactuar com a violência’. Foi a primeira mensagem que nós recebemos aqui, e nós aplaudimos, nós ficamos muito aliviados. A gente se encheu de esperança com a visita dele aqui.

“No entanto, há duas ou três semanas atrás, ele esteve aqui entregando valores suficientes para comprar centenas de fuzis e para construir unidade prisionais. É muito incongruente! É muito contraditório que ele venha, no início do governo e praticamente dizer: ‘Nós não vamos compactuar com a violência policial!’  E depois ele vem para transferir recursos para um governo que mata, um governo que provoca esse sofrimento, que é impossível de medir. Imagine essa mãe desse menino de 13 anos que foi morto dois dias atrás, na Cidade de Deus!

O choro e a dor dos amiguinhos de Thiago Menezes, de 13 anos, que foi assassinado na Cidade de Deus durante uma ação da PM do Rio de Janeiro – Foto Selma Souza

“Há uma foto circulando na internet que é de cortar o coração: crianças chorando no enterro do amiguinho. É absolutamente e tocante aquela foto. É esse Estado, que tem uma polícia que mata uma criança de treze anos”.

A entrevista tem a participação da socióloga Mariana Siracusa, coordenadora da pesquisa “Drogas: Quanto Custa Proibir”, que trata dos vários aspectos da política que atinge especialmente os mais pobres, os negros, os periféricos que vivem nesses “territórios violentados pela violência do Estado” –na definição das sociólogas. (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Diz Mariana:

“Nossos dados ajudam a mostrar os efeitos da guerra às drogas que não são tão facilmente identificados. Além se ser uma guerra que custa muito caro aos cofres públicos, que tem efeitos mais imediatos, como o aumento do encarceramento, sobretudo de mulheres, não há redução da circulação, venda e consumo de drogas. Além dos efeitos mais imediatos, como a corrupção policial, temos mostrado esses outros efeitos que são sentidos no cotidiano da população negra e pobre das periferias, mas que não são quantificados. Além de ser uma guerra cara e ineficaz, traz malefícios à saúde, à educação da população de favelas de periferia, que já está convivendo com tiro e com operações policias rotineiras. Eles deixam de aprender, deixam de ter aulas, adoecem em função dessa lógica de guerra.

“Tem uma dinâmica de perdas que quem sofre é sempre a população negra e pobre das periferias do Brasil. Essa lógica está espalhada pelo Brasil. É uma guerra cara, na qual a sociedade paga o preço. Mas quem sofre na pele é a população das favelas”.

Mariana (à esquerda, de verde) e Julita falam sobre os resultados da terceira etapa da pesquisa sobre o impacto da guerra às drogas

 

MAIS DOENÇA E MAIS PERDAS ECONÔMICAS NOS TERRITÓRIOS VIOLENTADOS PELO ESTADO

Realizada no ano passado, a pesquisa entrevistou 1.500 moradores maiores de 18 anos, de seis comunidades cariocas semelhantes do ponto de vista socioeconômico, mas expostas a diferentes níveis de violência armada. As comunidades foram divididas em dois grupos: três delas frequentemente afetadas por tiroteios com a presença de agentes de segurança em 2019 e outras três que não são atingidas pelo mesmo tipo de violência, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Foram considerados os tiroteios registrados a um raio de até 400 metros das unidades de saúde desses locais.

Os resultados, divulgados nesta quarta-feira (9.8), apontam:

DIFICULDADE DE ACESSO AO ATENDIMENTO MÉDICO: A maioria (59,5%) dos moradores de comunidades sujeitas a tiroteios com participação de agentes do Estado disse que a unidade de saúde já havia sido fechada como resultado da violência; o índice cai a 12,9% entre os respondentes de comunidades menos expostas.

AUMENTO DE PROBLEMAS DE SAÚDE: Moradores de comunidades expostas à violência têm 42% mais risco de desenvolver hipertensão quando comparados ao grupo de moradores de localidades menos afetadas.

CUSTOS PARA O ESTADO E PERDAS ECONÔMICAS PARA A POPULAÇÃO: O fechamento de unidades de saúde em comunidades com maior ocorrência de episódios de violência custa mais de R$ 300 mil aos cofres públicos e a sociedade. Moradores de comunidades mais expostas perdem por ano R$ 1,4 milhão, impedidos de realizar atividades habituais por problemas de saúde