Racismo, machismo, corrupção, desmonte do esporte olímpico brasileiro foram alguns dos temas tratados com a professora Katia Rubio, coordenadora da Grupo de Estudos Olímpicos da Universidade de São Paulo, em entrevista ao TUTAMÉIA que abre uma série dedicada aos Jogos Olímpicos (acompanhe a conversa no vídeo no alto desta página).
As chances do Brasil na Olimpíada de Tóquio-2020 são pífias, na opinião da estudiosa, que tem pós-doutorado em psicologia social pela Universidade de Barcelona e produziu, entre outras obras, a enciclopédia “Atletas Olímpicos Brasileiros”.
“Tá difícil”, diz ela. “A desclassificação do basquete feminina na semana passada foi uma dor sem fim. Cada vez que uma modalidade fica de fora dos Jogos Olímpicos, é um espelho que se quebra para as novas gerações. Não farei projeções de medalha porque é impossível fazer isso na atual conjuntura. Seria desumano e indecente”.
Isso porque, afirma, houve uma espécie de tsunami destruidor a partir de 2016: “É como se tivessem tirado o ralo de um tanque, e tudo escoou, porque se mexeu no sistema como um todo. Foi destruída a teia que sustentava o sistema”.
E segue:
“O esporte mudou muito, a vida do atleta mudou muito, mas nada se compara ao cavalo de pau acontecido depois de 2016, com a perda de todo o incentivo que o esporte brasileiro tinha até então. Começa com a extinção do ministério do Esporte, a perda dos patrocínios das estatais, que eram as grandes patrocinadoras do esporte, e dos patrocínios privados que, diante de toda a instabilidade que o país vive, não se arriscam a investir alguns milhões no fomento ao esporte.”
Exemplo disso, diz, é o voleibol, que era uma das modalidades mais bem organizadas e “hoje vive uma crise sem precedente, com times não conseguindo sequer honrar o pagamento a seus atletas”.
“Isso é o esporte no Brasil hoje”, resume: “Há uma não política de governo. O Brasil precisa de uma política de Estado para o esporte, não uma política de governo. Quando há uma política de Estado, entra governo, sai governo, a política está garantida. Quando há política de governo, ou de desgoverno, o que se vê é isso, esse tsunami que aconteceu nesses últimos quatro anos.”
O resultado, afirma, “foi a extinção de toda a base, que era frágil, se mostrou frágil depois do que tudo aconteceu. Diante da fragilidade do que existia, foi muito fácil destruir o que estava de pé. Agora sabe-se lá quanto tempo nós vamos precisar para poder reorganizar minimamente aquilo que foi destruído depois de tantos anos de trabalho. Vai se precisar de muito tempo para que se reconstitua o sistema e que se possa chegar ao nível que nós chegamos na década de 2010. Vai ser necessário muito esforço.”
Esforço que é preciso em todas as áreas, do simples reconhecimento do atleta como profissional à quebra de barreiras de preconceito racial e sexista.
“O atleta olímpico é um sujeito, uma mulher, um homem, um trans, uma trans, que busca seu espaço de ser e estar no mundo a partir da potencialidade de seu corpo, tendo respaldo institucional para isso ou não.”
Muitas vezes, não, como aconteceu com as mulheres ao longo da história do olimpismo, uma história de preconceitos, restrições, proibições, perseguições.
“Nada para as mulheres no cenário olímpico foi dado ou foi oferecido como um prêmio. Todas as modalidades femininas foram conquistas de mulheres, algumas que pagaram com a própria carreira.”
E ainda: “Os argumentos que servem para os homens não servem para as mulheres. Durante muito tempo e ainda hoje, a ciência serve a essa estrutura de poder masculina para impedir que as mulheres cheguem onde elas devem, podem, por direito chegar”.
A própria formação do atleta facilita o processo de dominação, diz a professora Katia Rubio: “O atleta é educado a treinar, competir, comer e dormir. Como se a vida de um ser humano se reduzisse a isso. Essencialmente, ele é educado a obedecer às regras dos mecanismos que gravitam em torno do esporte. Isso leva a uma dificuldade de organização, mas acima de tudo a um medo muito grande. Dificulta o diálogo entre os atletas e uma organização efetiva para o enfrentamento dessas situações.”
Enfrentamento que precisa ocorrer em todas as instâncias, das quadras e dos campos aos bancos escolares:
“Quando eu falo em mobilização dos atletas, eu falo em mobilização de maneira geral. Da mesma forma que eu falo para meus alunos que é preciso lutar pelas bolsas de estudo, que a gente precisa lutar pela universidade pública, para que ela não seja destruída, tudo isso são tramas de um sistema. Eu sou professora, e acho que a condição de ser professora é buscar elementos que te façam crer. Sou incapaz de enfrentar meus alunos e dizer que saída é o aeroporto de Guarulhos. Eu jamais vou dizer. É preciso derrotar essa política. Nós iremos perseverar. Sempre.”
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