“A erva mate cada vez cria mais mercado. Mais gente toma erva mate. Estamos vivendo nos últimos anos a retomada daquilo que os indígenas já faziam nos séculos 16 e 17, que era o uso de erva marte de diversas formas, aplicável a diversos produtos. Se recuperou também a forma de chá de erva mate, a composição de jujos de erva mate com outras ervas. Está se retomando também a aplicação de erva mate na culinária –hoje você come bolo de erva mate, massa de erva mate, doces… Aquilo que o indígena já fazia desde sempre, há um pessoal com uma alma indígena hoje, digamos assim, tentando recuperar isso da erva mate.”

Essa é a avaliação do jornalista e historiador gaúcho Tau Golin, autor de uma monumental biografia daquele produto beneficiado pelos indígenas do sul do Brasil e da América: “Mateando – Os Ervais do Povos Indígenas”, primeiro tomo, com mais de seiscentas páginas, da “História da Erva Mate e do Chimarrão”. A obra, por sua vez, integra outra empreitada de enorme fôlego, é o quarto volume da coleção “A Fronteira”, que trata do povoamento da América meridional.

Em entrevista ao TUTAMÉIA, o professor-pesquisador em história da Universidade de Passo Fundo, com pós-doutorado nas universidades de Lisboa e La Republica, em Montevidéu, fala do projeto, mas principalmente conta a história cheia de aventuras, dramas, exploração e espoliação desse produto construído como uma das marcas do gaúcho (clique no vídeo para acompanhar a íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“Trata-se de um hábito que tem entre quatro mil e cinco mil anos. Era uma bebida, mas também um elemento que sempre fazia parte dos rituais dos pajés, dos xamãs.  Com a colonização, ela vai surgir como uma possibilidade de ser um produto que vai se associar à cultura dos chás. Seria o equivalente a todos aqueles fenômenos do descobrimento, as especiarias… O elemento da América Meridional que entra nessa cadeia, nesse imaginário, foi a erva mate.”

GARIMPO VERDE

E logo passa a ser produto de mercado:

“Ela não só vai surgir, se estender, amplificar como um hábito que vai tomar conta dos colonizadores. Começa pelos trabalhadores subalternos, depois atinge toda a população da América Meridional e inclusive chega até o Chile e ao Peru. E vai ser o primeiro produto de exportação.”

A exploração é enorme:

“Os ervais nativos vão se converter em uma espécie de garimpo verde, digamos assim, porque estava ali um produto –a erva mate é uma árvore, tem toda uma tecnologia indígena até ela se converter naquilo que a gente chama de erva mate. Além de seu valor econômico, tem valor medicinal, porque ela surge como o grande remédio da época, lá nos séculos 16, 17 e principalmente no século 18, surge como o grande remédio para uma maldição que era a gota, toda a nobreza europeia sofria com o ácido úrico. Na época não se conseguia pegar sementes, fazer lavouras de erva mate, apenas os indígenas tinham um sistema de replantio das mudas que se formavam na natureza. O povoamento nos primeiros séculos vai estar muito vinculado a esse bem de um território que não tinha minas de prata e ouro, mas tinha a possibilidade desse garimpo verde.”

Golin segue:

“Conseguir que os indígenas transformassem a árvora Kaa, que era o nome da erva mate, era não só uma questão geopolítica, mas uma questão econômica e se converteu numa questão cultural. Foi o primeiro produto de exportação do Brasil sulino. Lá no final do século 16, início do século 17, na província do Guairá, que hoje é Paraná, Santa Catarina e um pedaço do Mato Grosso, os indígenas eram escravizados, levados aos milhares para os ervais nativos, milhares morriam na servidão nesses locais. Os ervais eram grandes empreendimentos.”

O historiador também fala sobre as guerras e o processo de ocupação do território dos povos originários. Trata ainda dos avanços do conhecimento sobre a erva, que permitiram enfim a constituição de lavouras, plantio organizado das árvores. Lembra o seu uso como medicamento entre os índicos e instrumento usado nas cerimônias comandadas pelos pajés. E conta sobre as várias formas de consumo:

“A erva mate era tomada em vários recipientes, tanto poderia ser tomada quente como em água fria. Podia ser bebida com se em uma xícara e principalmente por canudo –que hoje chamamos bomba. A erva mate foi dogmatizada por um gauchismo que organiza os comportamentos. Então tem de ser o mate amargo, não pode botar açúcar. Os indígenas tomavam várias coisas no mate: tomavam doce, colocavam mel, colocavam açúcar –principalmente os missioneiros, quando começaram também a plantar cana de açúcar. E misturavam outros chás na erva mate, conforme sua medicina ancestral.”

CAPITAL SIMBÓLICO

Os dogmas sobre o chimarrão de certa forma contêm a expansão do uso da bebida, avalia o historiador:

“Há algo que é perverso, uma luta pela capital simbólico, principalmente no sul do Brasil, aqui no Rio Grande do Sul, que vinculou o imaginário da erva mate ao gaúcho. Isso é um engodo. A erva mate não é do gaúcho, a erva mate é indígena. O pobre do gaúcho, que nunca produziu nada, sempre foi um saqueador de campo, um sujeito relegado, que vivia meio que na bandidagem, um desprovido, a única coisa que podia tomar nas suas andanças, nas suas cavalgadas, só podia levar na sua mala de garupa um pacote de erva e seus avios de mate.”

Ele segue:

“Então, um consumidor assumiu uma figura simbólica de estampa que apaga, rouba, o verdadeiro dono genuíno desse capital, tanto o capital econômico quanto o simbólico. Isso estabelece também um limite para a erva mate. Acaba colocando a erva mate numa certa rixa doentia das regiões do Brasil. Tem muita gente que não toma erva mate no Brasil porque é coisa de gaúcho. Precisamos cada vez mais trazer o protagonismo, a sabedoria indígena para a erva mate. Acho que a erva mais vai se espraiar cada vez mais e vai ser mais digerível, muito mais aceitável no instante em que for reconhecida como um produto, um saber, um conhecimento indígena. Acho que através desse hábito, dessa cotidianidade da erva mate, do mate, do chimarrão nas nossas vidas, nós conseguimos aprofundar, salientar e chamar a atenção para a grande contribuição que os povos indígenas deram e continuam dando para o Brasil e para a América de uma forma geral.”