“Eu espero sempre evoluir. Acho horrível você empacar numa posição sem pensar nos outros. A gente está sempre aprendendo, sempre evoluindo. Tem de sempre procurar entender com é na realidade e lutar pelo bem dos outros. Não é muito fácil, não; às vezes é bem difícil.”
Palavras de Margarida Genevois, a grande dama brasileira dos direitos humanos, falando ao TUTAMÉIA na semana do centenário dos dois paulos, o cardeal Arns e o educador Paulo Freire. Duas referências na vida dessa ativista da democracia, que presidiu a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo nos momentos mais difíceis da ditadura militar e hoje, aos 98 anos –“e seis meses”, lembra ela—segue na militância, agora como presidente emérita da Comissão Arns.
Segue também analisando a situação do país e esperançando, como ela diz (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV):
“A tendência é a gente ficar pessimista, porque há tantas coisas absurdas acontecendo. A gente pensa, num dia, que já chegamos ao pior e, no dia seguinte, tem outra novidade pior ainda. É um momento muito difícil. Na pandemia, a gente se sente bastante limitada para fazer algumas coisas porque as circunstâncias são adversas. Mas vamos tentando. Acredito que na hora da votação vai ser diferente. Vamos fazer tudo o que for possível para evitar a continuação dessa situação.”
E completa: “Tenho a impressão de que a coisa está indo de um jeito que o conhecimento das coisas reais está aumentando. Estamos num bom caminho de uma conscientização das coisas reais, e nós aos poucos vamos sair dessa, eu tenho certeza. Vai acabar virando, porque não é possível pessoas sãs de cabeça terem essa ideia errada, esse egoísmo, isso que parece um medo de gostar do outro”.
A esperança, ela conta, aprendeu com dom Paulo Evaristo Arns:
“Ele semeava a esperança. Com a pregação da coragem, ele empurrava a esperança, e a gente vai cada vez mais confiante atrás dessa esperança, que ele planta. Sempre com a sua presença, com as suas palavras. Não são palavras demagógicas: era uma ação dele, que vinha de dentro e transmitia para a gente uma coragem que passava a ser essencial. Para ele, coragem era natural, era o que devia ser realizado, pessoalmente e em grupo. A gente precisava estar sempre trabalhando para ter essa esperança. Ele empurrava a esperança, e a gente ia atrás.”
Lembra também:
“Nós, de classe média, pouco sabíamos o que estava se passando, realmente, durante a ditadura militar. As prisões, as torturas, os assassinatos, as perseguições. As pessoas liam jornais, não viam nada escrito por causa da censura. Dom Paulo era a única pessoa que oficialmente aceitava dar um apoio a essas pessoas perseguidas. Ele não dava mais conta de tanto apelo que aparecia na Cúria pedindo auxílio. Então ele conseguiu do papa a licença para criar a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. Essa foi a nossa força: apenas a luta pela justiça e por uma sociedade democrática. Era nossa bandeira, sempre foi e continua sendo.”
Margarida fala sobre a teologia da libertação, que embasava o posicionamento de parte da igreja católica ao lado dos mais vulneráveis da sociedade, dos perseguidos políticos:
“A gente nem sempre foi compreendida. Era considerada uma ideia avançada, um pouco ousada, mas essencialmente era isto: o respeito e a prática, a vivência dos direitos humanos para todos. Todos somos iguais, grandes e pequenos, pobres e ricos, inteiramente iguais em sua dignidade, e isso traz consequências enormes no dia a dia, na vivência de cada ato, na vida diária. A teologia da libertação realmente começou uma revolução interna na igreja. A teologia da libertação foi um movimento, assim como uma luz dentro da igreja. As pessoas se convertiam, e você via jovens, sobretudo, entusiasmados, que levavam a sério. Muitos deram a vida por essas ideias, que no fundo vieram da Teologia da Libertação.”
É uma igreja que precisa voltar, afirma ela: “Infelizmente, restou muito pouco da Teologia da Libertação, pelo menos com esse título, mas o espírito ainda existe, e eu espero que recomece em breve, porque senão não tem sentido a vida. Uma religião só para si, de meditação e concentração, já não tem a importância. Nós precisamos de uma igreja vivida. Religião é para ser vivida a cada dia e a cada momento, no respeito ao outro, na vontade que ele progrida, que saia dos seus problemas. Acho que tem aí um campo incrível de trabalho”.
Ao TUTAMÉIA, conta momentos de sua lutas, relembra episódios também destacados no recém-lançado livro sobre sua vida –“Margarida, Coragem e Esperança”, biografia escrita pelo jornalista Camilo Vannuchi.
Considera que há uma espécie de falta de memória hoje, quando a juventude parece desconhecer o que foi a ditadura e as lutas dos que enfrentaram aquele regime: “Os jovens não sabem o que se passou na ditadura ou sabem muito superficialmente. Não se fala muito o que foi na prática, o que é uma ditadura, as pessoas se anulavam e ficavam sem ação, perdemos quantas e quantas vidas, jovens, alguns heroicamente defendendo as ideias que estavam convencidos de que eram importantes”.
Ela prossegue: “Quantos e quantos heróis tivemos no Brasil nessa época, e que hoje ninguém se lembra. São os heróis esquecidos. Acho muito injusto, porque eles deram a vida. Tentamos na comissão defender alguns, esses que tinham processo. Nós aceitávamos todos que nos pediam auxilio, nunca perguntamos de que partido era. Para nós, era uma pessoa que estava em sofrimento, que tinha sido torturada, que tinha um ideal e que precisava ser defendida”.
Fala ainda sobre a rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e seu projeto de ter o ensino dos direitos humanos no currículo escolar –plano que entusiasmou Paulo Freire e que hoje parece distante. Mas não impossível:
“Tenho certeza de que teremos o ensino dos direitos humanos nos currículos escolares. Pode demorar um pouco mais do que gostaríamos, mas eu tenho certeza de vamos chegar lá. Não tem outra solução. As pessoas de hoje precisam ser despertadas, precisam ser lembradas de que tudo isso vai ser passageiro, que nós vamos superar, se Deus quiser, porque essa que é a verdade.”
Verdade que segue defendendo: “Tenho boa saúde, boa disposição, mas os anos pesam, não adianta disfarçar. A gente vai resistindo, mas eles estão aí. Tenho a preocupação de não me deixar levar, mas às vezes é pesado. Quero morrer em pé, morrer trabalhando. Esse negócio de se aposentar das atividades é triste, acho que é pior do que a doença. Então eu faço o possível para superar as mazelas normais de qualquer pessoa de noventa e oito anos. Enquanto puder, estou aí”.
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