“Mentiras foram parar nos livros. A história econômica foi bastante manipulada no período da ditadura militar. Temos preconceitos arraigados. Há vergonha de olhar para a nossa história e dizer que se teve um Juscelino Kubitschek, um Getúlio Vargas. Quase tudo que a gente tem hoje é porque eles existiram”.

O desabafo é de Lea Vidigal, professora de direito econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em entrevista ao TUTAMÉIA. Ela está lançando “BNDES, em Estudo de Direito Econômico”, obra que traça um histórico do banco de investimento criado por Getúlio Vargas e agora sob ataque do governo Bolsonaro.

No livro, Lea mostra as metamorfoses da instituição: de banco de financiamento para o setor público, passou a ser vital para o setor privado. Ajudou a transformar a economia brasileira, sendo instrumento crucial da industrialização. Depois, socorreu empresas, foi agente de privatizações, modelou grandes companhias (as campeãs nacionais) e induziu processos de inovação.

“A gente tem medo de falar de nacional. A gente não honra a construção de nossos antepassados, os nossos pais no sentido de fundadores do desenvolvimento. A gente tem que honrar o patrimônio que recebe. Se não, se corre o risco de desvalorizar isso e perder a noção da função do patrimônio, perder o próprio patrimônio, deixar que aconteça essa venda barata, essa entrega essa perda de soberania, perda de autonomia em relação ao nosso futuro”, declara.

Na entrevista (acompanhe no vídeo acima), a autora fala das conclusões de sua pesquisa, da importância do planejamento para o desenvolvimento, condena privatizações e defende a importância do Estado.

“A privatização já aconteceu nos anos 1990 e não funcionou. As taxas de energia elétrica, por exemplo, só subiram. Depois de privatizarem, vários países estão reestatizando setores, como o de abastecimento de água, energia, os transportes. Não funcionou”, diz. E acrescenta: “A ideologia do livre mercado não passa de uma ideia falha. Ela se desestrutura na mirada tanto do presente quando do passado”.

Afirma Lea:

“O Brasil teve uma história de desenvolvimento quando organizou o seu mercado, quando viabilizou a industrialização por meio do planejamento. Hoje o que existe nas nações que estão em desenvolvimento ou nas desenvolvidas é uma atuação profunda do Estado. O Estado é a inteligência de longo prazo, é o capital que sustenta os investimentos que a iniciativa privada nunca vai fazer em tecnologia. A inovação do iPhone, por exemplo, foi inventada pelo Estado”.

A professora de direito fala sobre os ataques que o BNDES está sofrendo. Enfatiza que o desmonte fere princípios estabelecidos na Constituição.

“Há uma contradição gritante com o projeto que está na Constituição, que é um projeto da sociedade brasileira, um projeto brasileiro de desenvolvimento que aconteça em bases soberanas e democráticas e com redistribuição dos recursos econômicos, com emprego, renda e redução das desigualdades regionais”, diz.

Apesar do quadro pra lá de sombrio, Lea diz que ainda está confiante numa virada: “Ainda não joguei a toalha”, afirma. E completa:

“Só [sairemos desse quadro] a partir da nossa criatividade. O Brasil tem jeito. A solução é voltar para as nossas raízes, para o nosso povo e olhar para o quanto a gente foi grande. O passado ajuda nisso. A gente é grande. Olhar para Juscelino me dá alivio. O BNDES pode voltar. Precisará ser reestruturado. É preciso segurar as pontas enquanto isso. Para reconstruir uma estrutura, reganhar essa consciência de um projeto nacional, que parte do cidadão, da cultura, da capacidade de projetar um futuro digno para a sociedade brasileira, adequado às nossas raízes, à nossa identidade. Não adianta importar fórmulas”.