“Sou militante dos direitos humanos porque assumi um compromisso com a vida. A vida é o bem mais importante. Eu não estou reivindicando nada, eu não tenho nada. Mas eu tenho a memória do meu filho para preservar. Por que um jovem é sacrificado pela sua própria Nação?  Eu não poderia acreditar em Deus, como eu acredito, se não acreditasse nos direitos humanos. De que adianta fazer orações –como agora, nas reuniões do presidente, é difícil começar uma reunião sem fazer uma oração–, mas de que adianta orar a Deus, que é o Deus da vida, foi Ele que nos deu a vida, e celebrar esse Deus torturando as pessoas? Então acho que minha grande motivação é a luta contra a tortura, em todos os níveis.”

Assim fala o jornalista Dermi Azevedo, escritor e cientista político, um dos maiores especialistas nos meandros da igreja e batalhador incansável em defesa dos direitos humanos. Preso e torturado durante a ditadura militar, que também prendeu e torturou seu filho, então com um ano e oito meses, Azevedo, hoje com 69 anos e sofrendo do mal de Parkinson, falou ao TUTAMÉIA sobre sua militância e denunciou os riscos que a democracia corre no Brasil (confira no vídeo no alto desta página).

“Com certeza, não contribui em nada para um Brasil democrático e justo defender a tortura, como defendeu o presidente eleito”, dizo jornalista.

“A tortura voltou em grande escala”, alerta ele, dizendo: “A democracia está fortemente ameaçada no Brasil. Essa corrente mais ligada ao Bolsonaro é muito impregnada de uma mentalidade fascistas.”

E faz um desafio: “O presidente eleito deveria rever seus valores. Como conciliar a defesa da família, da mulher e dos direitos humanos, que vai ser um ministério, como conciliar isso com a defesa da tortura?”

“Em 1974, na minha segunda prisão política –a primeira foi em 1968, no Congresso da UNE, em Ibiúna–, conheci a realidade da tortura”.

E segue contando:

“Eu já tinha sido preso. No dia de minha prisão, a polícia invadiu o apartamento em que nós morávamos, em Campo Belo (zona sul de São Paulo). Quando os policiais entraram, meu filho, que estava no colo da empregada, estranhou e começou a chorar. E um dos policiais lhe deu um murro tão violento que quebrou os dentinhos dele. Ele tinha um ano e oito meses.”

“Depois ele foi levado a São Bernardo do Campo, onde morava meu sogro, e ele foi jogado de madrugada na porta da casa do meu sogro, no Jardim Assunção, e jogaram o bebê no chão. E ele semachucou mais ainda. Depois que nós fomos soltos, ele ficou traumatizado e, em fevereiro de 2013, ele se suicidou. Tomou uma overdose de medicamentos e sesuicidou. Deixou bilhetes atribuindo a morte dele à ditadura. Sequelas da ditadura, de perder a confiança nele mesmo e entrar nesse universo tãomisterioso e terrível.”

Na entrevista, ficamos um pouco em silêncio depois desse relato. Mas, em uma mensagem publicada nas redes sociais no dia da morte do filho, Dermi Azevedo deu mais detalhes:

“Meu coração sangra de dor. O meu filho mais velho, Carlos Alexandre Azevedo, suicidou-se na madrugada dehoje, com uma overdose de medicamentos. Com apenas um ano e oito meses de vida,ele foi preso e torturado, em 14 de janeiro de 1974, no Deops paulista, pela “equipe” do delegado Sérgio Fleury, onde se encontrava preso com sua mãe. Na mesma data, eu já estava preso no mesmo local. Cacá, como carinhosamente o chamávamos, foi levado depois a São Bernardo do Campo, onde, em plena madrugada, os policiais derrubaram a porta e o jogaram no chão, tendo machucado a cabeça. Nunca mais se recuperou. Como acontece com os crimes da ditadura de 1964/1985, o crime ficou impune. O suicídio é o limite de sua angústia.”

Nas masmorras da ditadura, Azevedo seguia enfrentando a violência, passando por um processo sem pé nem cabeça –semelhante, na falta debase, a procedimentos jurídicos que vemos hoje. Ele conta assim:

“A pedido da Renova, que era um escritório de assuntos educacionais, dirigido por Maria Nilde Mascellani, que foi uma grande educadora, da estirpe de Paulo Freire, eu fazia um trabalho de pesquisa sobre educação moral e cívica e a escalada fascista no Brasil. Eles levaram esse trabalho. Por causa desse trabalho, me acusaram de difamar a imagem do Brasil no exterior, porque o trabalho foi encomendado pelo Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra.

“Nossos advogados foram muito hábeis, Luiz Eduardo Greenhalgh, Idibal Piveta e Airton Soares, foram muito hábeis em demonstrar que não houve crime nenhum porque o trabalho não chegou a sair do Brasil. Estava sendo feito, mas não tinha sido consumado nem aprovado pelo Conselho Mundial.

“Mesmo assim, a intenção era condenar mesmo. E, no julgamento desse caso específico, o juiz militar na avenida Brigadeiro Luiz Antônio,ele nos interrogou e, depois de um certo tempo, pronunciou a sentença: `Eu absolvo, mas estou convencido de que são comunistas`.

“Essa coisa de ser comunista me fez lembrar um outro episódio, complementar. Eu fui chamado para ser interrogado, na prisão. Ele me perguntou, não gentilmente, é lógico: `Você é comunista?` Eu disse: `Não sou comunista`. E ele: `Como que não é comunista, com tantas evidências, tantas provas?` Eu disse: `Delegado, ser comunista é uma dignidade tão grande para o ser humano quem nem eu nem o senhor vamos alcançar`. E ele me deu um murro. A resposta dele foi me dar um murro, me jogou no chão.

“E eu continuo pensando da mesma forma.”

Acima de tudo, continua pensando que é preciso defender a vida, em quaisquer circunstâncias, quaisquer que sejam as dificuldades.

RESISTÊNCIA

No próprio ano em que seu filho mais velho se suicidou, Dermi Azevedo passou a sofrer da doença que hoje lhe dificulta os movimentos:

“Contraí a doença de Parkinson em 2003. Está sendo um grande aprendizado sobre a efemeridade da vida humana, sobre o que significa o apoio solidário de pessoas, como o da minha esposa, Elis Regina, e a solidariedade de modo geral. É uma realidade que, do meu ponto de vista, não está sendo devidamente assumida nem a nível de governo nem em sentido pessoal, interpessoal. É como se a pessoa estivesse entrado em uma estado de pré-morte.Quando na verdade, Stephen Hawking demonstrou que podia fazer muita coisa.”

Dermi Azevedo tem demonstrado que, apesar das limitações, pode fazer muita coisa.

Atua, por exemplo, em vários organismos de defesa de direitos humanos, faz palestras e escreve –neste ano, lançou “Nenhum Direito A Menos”, que tem como subtítulo “Direitos Humanos – Teoria e Prática”, pela Giramundo Editora. Trata-se de um compêndio quase enciclopédico –ainda que curto—sobre o tema: traz pequenas biografias de heróis da liberdade, no país e no mundo, sumariza a legislação sobre o tema, debate conceitos, polemiza com visões estreitas que deturpam o sentido dos direitos humanos.

E se prepara para lançar, no próximo ano, a pesquisa sobre a relação entre educação moral e cívica e a escalada do fascismo no Brasil–aquela mesma, agora revista, em que trabalhava quando foi preso em 1974.

O que torna ainda mais concretas as palavras que diz sobre seus caminhos: “Acredito em resistir, a palavra-chave é resistir. Resistir da maneira que for possível resistir. Nós advogamos a resistência institucional, a resistência política, a não violência de Gandhi, Mandela, Martin Luther King, Oscar Romero, Marielle”.

E completa: “Há muita coisa que pode ser feita. Não pode haver democracia sem o respeito aos direitos humanos. Não pode existir uma democracia longe dos direitos humanos. É o que eu penso.”