O Brasil vive uma regressão profunda. O que vigora é um liberalismo da idade das cavernas, muito tosco e embrutecido, um terraplanismo fiscal. O novo governo vai ter que socorrer as classes mais oprimidas, recuperar o investimento público e reindustrializar o país no sentido dos setores mais inovadores. Será necessária uma articulação entre o Estado e os empresários, recuperando a ideia de Antonio Gramsci de “fabricar os fabricantes”. E é preciso lembrar que o pai de Antônio Ermírio de Moraes foi produzido por Getúlio Vargas. Os Lafer também foram produzidos por Getúlio. Juscelino Kubitschek também produziu muitos empresários.

É o que afirma o economista Luiz Gonzaga Belluzzo ao TUTAMÉIA. Professor da Unicamp e fundador da Facamp, ele afirma que a abertura das contas em dólar é fato “gravíssimo e muito perigoso”. “Isso devia ser combatido ferozmente. Lembro do ‘corralito’ argentino. É impressionante como essa gente não aprende nada. É abrir mão completamente da soberania monetária”, diz.

Falando sobre um possível governo progressista, ele declara:

“A capacidade de negociação do Lula precisa estar muito afiada. De negociação política, sobretudo, e de reafirmação de certos princípios que devem guiar a sua política econômica”.

Belluzzo, que foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987), alerta:

“Estou nessa vida desde os anos 1970, quando assessorei o dr. Ulysses. Fiquei satisfeito com a redemocratização, com a Constituinte. Mas a gente acha que as coisas acabaram? Não vão acabar. A gente tem que sempre ficar lutando. Não pensem que uma vitória do Lula, por exemplo, vai acabar com essa camada que se indispõe com tudo que a civilização criou. Basta ver o que está acontecendo no resto do mundo. A gente sempre tem que estar pronto para resistir, para construir, para lutar. Porque isso não vai acabar amanhã com a vitória. É preciso a vitória para a gente começar. Não é para acabar”.

Acompanhe a íntegra da entrevista no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV.

Alguns trechos da conversa:

NA ECONOMIA AS PESSOAS NÃO EXISTEM, A NÃO SER COMO COÁGULOS MONETÁRIOS

“O debate econômico, com exceção de alguns setores, não tem a capacidade de perceber a inequação, a impropriedade e a estupidez de um negócio como o teto de gastos, por exemplo. Que, aliás, nem está sendo obedecido”.

“Vi hoje o Luiz D’Ávila vomitando aquelas banalidades liberais que não têm mais nada a ver com o mundo contemporâneo. Esse é que é o problema. É como você chegar no alfaiate e você tem um metro e noventa e você pede uma fatiota de um sujeito que tem um metro e meio. Não vai caber; não vai funcionar. É isso que está acontecendo com a teoria econômica e com o debate no Brasil”.

“Os editoriais da grande imprensa são um desastre. Fazem terraplanismo fiscal, desrespeitando completamente a forma de funcionamento da economia capitalista”.

“Eles tratam o dinheiro simplesmente como um lubrificador das trocas. O dinheiro é a forma geral da riqueza. Não existe nada nessa economia que não se faça em termos monetários. As pessoas não existem. Não existem! A não ser como coágulos monetários. Ninguém existe sem dinheiro. A pessoa que não tem dinheiro socialmente não existe. Pode existir fisicamente, mas socialmente ela não existe. Estamos lidando com um liberalismo da idade das cavernas. Muito tosco, muito embrutecido”.

“A capacidade de negociação do Lula precisa estar muito afiada. De negociação política, sobretudo, e de reafirmação de certos princípios que devem guiar a sua política econômica. Como por exemplo: não é negociável esse socorro que se tem que fazer às classes oprimidas que estão sofrendo. Aí não tem negociação. Ele já disse que vai botar o pobre no orçamento”.

QUEM QUEBROU O BRASIL FORAM ELES

“A maioria dos economistas que se manifesta pela mídia e os editoriais diziam que tudo era um desastre. Na verdade, não era desastre coisa nenhuma. A economia desacelerou por conta inclusive das crises europeia, da Grécia. Mas mantivemos o superávit primário até 2014. Em 2014, a economia desacelerou muito forte, teve 0,6% de déficit primário e o crescimento de 0,5%. Aí veio o tal do ajuste comandado pelo Joaquim Levy, que era um cara deles. Ele fez um choque de tarifas e a inflação em 2015 foi de 10,5%. Por causa dos choques de preços administrados, parecido com o que está acontecendo agora. Comprimiu o investimento público, e a taxa de juros subiu para 14,25%”.

“Essa conjugação de trombadas acabou jogando a economia numa depressão. A queda foi de 3,6% em 2015 e de 3,3 em 2016. Aí eles falam que o PT quebrou o Brasil. Quem quebrou o Brasil foram eles. Eles estão acostumados a fazer isso. Já quebraram nos anos 80, ao estimular o endividamento externo para financiar os programas no segundo PND. Eles apoiaram o tempo inteiro, a turma deles, o Mario Henrique Simonsen”.

“A regressão foi muito profunda aqui. O Lula vai ter que enfrentar essa questão da volatividade da taxa de câmbio, dos efeitos que produz sobre a taxa de juros, da especulação financeira. O pessoal não se dá conta de que esses movimentos são determinantes, de fora para dentro. O pessoal fica: ‘Ahh, o risco fiscal’. Não é. É coisa de fora para dentro que determina realmente a situação dos países, sobretudo os países que não têm moeda conversível. Vai ser um problema, e o Brasil tem alguma capacidade de enfrentar por causa de suas reservas. E tem os swaps cambiais para impedir essa volatividade”.

RECUPERAR O INVESTIMENTO PÚBLICO

“Não dá para ficar submetido a esse movimento de capitais, que é puramente especulativo. Não há mais no mundo quase investimento direto estrangeiro. Não tem investimento direto produtivo em fábricas novas. Só tem movimento financeiro. A taxa de câmbio não é determinada pela importação e exportação, mas sim pelo movimento financeiro”.

“Garantir a vida dos que foram machucados por esse desastre econômico e político do Bolsonaro e do Paulo Guedes. Isso é muito importante como pontapé inicial. Mas você precisa recuperar o investimento público. A taxa de investimento agregada (pública mais privada) está em 14% do PIB, nunca foi tão baixa. Estava em 21%, 22%.     Recuperar o investimento e fazer isso de forma muito bem dirigida”.

REINDUSTRIALIZAÇÃO, CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SAÚDE

“Tem que recuperar a capacidade de investimento e, no caso da reindustrialização, não vai ser fácil. A desindustrialização no Brasil foi muito rápida. A indústria brasileira não foi só vitimada pela perda de setores, como não houve a incorporação de setores novos, os mais avançados”.

“Então vamos ter que trabalhar na esfera industrial, tecnológica, na relação das empresas com os centros de pesquisa. Teríamos que ter um programa específico para a saúde. Temos condição de fazer uma reindustrialização na área da saúde. Há gente qualificada, basta ver, na pandemia, a qualidade dos cientistas brasileiros. Há qualidade da universidade brasileira nessa área e em outras”.

GETÚLIO E O PAI DE ANTÔNIO ERMÍRIO

“A ideia de fabricar os fabricantes vem dos anos 1920, do Antonio Gramsci [1891-1937]. Isso vai se repetir. Você vai ter que criar oportunidades muito bem definidas por parte do gasto público, que atraiam a participação empresarial. Tem muito empresário pequeno e médio que teria oportunidade de apostar nesse salto. Vejam o caso da Califórnia”.

“O avanço tem se fazer na direção dos setores mais avançados. Vai precisar ter uma articulação muito séria do Estado com o setor empresarial”.

“É preciso que você tenha, como dizia o Keynes, um orçamento de capital que motive os empresários, que lhes dê confiança de investir, de participar dessa aventura. Como foi o caso do pai do Antônio Ermírio de Moraes, que foi produzido pelo Getúlio. Os Lafer foram produzidos pelo Getúlio. Juscelino também produziu muitos deles”.

É PRECISO REGULAR OS MERCADOS FINANCEIROS

“Nessa economia monetário-financeira, os mercados financeiros precificam o valor dos ativos que são negociados. Na precificação dos ativos, eles afetam também o crédito para diversos setores. O mercado financeiro é fundamental para a alocação de recursos. Se você não tem um controle sobre o mercado financeiro, deixado à própria sorte, ele vai fazer as suas felonias, vai se voltar para ele mesmo”.

“Isso é o rentismo. O rentismo é macro, não é atitude psicológica. O rentismo conduz todos os protagonistas do processo econômico e social a se comportarem da mesma maneira. Não vamos nos iludir que a mudança vá acontecer sem uma regulação muito firme dos mercados financeiros. Você não vai eliminar o mercado financeiro, porque ele é um instrumento importante, como ficou demonstrado, na experiência brasileira de desenvolvimento, com os bancos públicos, com o BNDES, com a Caixa, com o financiamento das empresas públicas que geram demanda para o setor privado. Precisa rearticular isso. É o que o Biden está tentado fazer, de uma maneira um pouco complicada, ou os europeus no programa Next Generation”.