“Foi um divisor de águas. Uma sentença muito bem-vinda. Não é aquilo que a gente esperava, a gente ainda tem muita coisa para desenrolar. Mas foi sintomático, foi emblemático. Mas ficamos muito felizes. É uma data histórica, a dessa primeira decisão condenatória.”
Assim a procuradora regional da República Eugênia Augusta Gonzaga, ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos comentou a recente condenação do delegado Carlos Alberto Augusto, ex-agente da ditadura militar conhecido como “Carlinhos Metralha”, pelo sequestro do fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, desaparecido desde 1971. Trata-se da primeira condenação penal em relação a crimes cometidos durante o regime militar, segundo o Ministério Público Federal.
“Essa decisão reacende uma esperança. Prevaleceu uma visada civilizatória. Foi um pé na porta. Você põe o pé, a porta não se fecha mais. É isso que a gente tem de fazer em nosso país, tentar enfrentar a nossa construção, o pacto com a violência que marca nossa formação como país e como nação”, avalia a psicanalista Maria Auxiliadora Arantes, a Dodora, que foi coordenadora geral de Combate à Tortura da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República no governo Lula.
Eugênia e Dodora conversaram com TUTAMÉIA às vésperas do Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura, 26 de julho, data instituída pelas Nações Unidas para denunciar e combater essa prática, crime contra humanidade. No Brasil, a data será marcada por uma série de debates, manifestações em vários estados e pela campanha #ReinterpretaJáSTF, que exige da Justiça o processo e a condenação dos crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar –tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos.
“Precisamos bater nessa tecla: a importância de o STF rever a decisão que tomou em 2010 no sentido de aplicar a Lei de Anistia para os agentes da ditadura. Ele precisa rever essa posição. Não deu certo. Esse pacto, por mais bem intencionado que tenha sido, para retomar a democracia –um objetivo brilhante!–, esse pacto de impunidade não deu certo. Nós hoje temos a continuidade da violência do estado, temos resultados terríveis e temos ainda uma democracia fragilizada”, aponta Eugênia Gonzaga, que participa do movimento Vozes do Silêncio, contra a violência perpetrada pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar (clique no vídeo para acompanhar a entrevista completa e se inscreva no canal TUTAMÉIA TV).
A própria eleição de Bolsonaro, um elemento que defende a tortura e tem um torturador como herói, é um dos resultados dessa trajetória, afirma ela: “Vemos em vários países, neste início do século 21, uma onda de conservadorismo, uma onda identificada com a extrema direita, não é só no Brasil. Porém é só no Brasil que os líderes dessas ondas têm tanta tranquilidade de atentar contra a democracia, de fazer apologia à tortura. Estamos certos de que isso se ocorre porque o Brasil fez um pacto de impunidade, e esse pacto precisa ser revisto”.
Autora do livro “Tortura – Testemunhos de um Crime Demasiadamente Humano”, Dodora Arantes afirma: “A tortura é um enclave dentro do humano, é um resto da barbárie que ficou encapsulado na condição psíquica dos humanos. Todo processo civilizatório veio para engrandecer o que há de melhor no humano, mas o pior permanece. Por isso a tortura permanece entre os humanos como uma prática que não se desfaz, uma espécie de núcleo duro que não se desfaz. Sendo da ordem do humano, o processo de apagamento, de enclausuramento, de silenciamento, de desfazimento desse núcleo duro é permanente. Aí é que vem o processo civilizatório. A tortura, sendo da ordem do humano, ela abre uma fenda, que, se não se cola plenamente, há um escape. Ao ocorrer esse escape, aflora o pior do humano. A batalha contra a tortura tem de ser permanente, um combate permanente.”
Ela alerta: “Quando humanos se juntam ao Estado para uma pauta de ódio, ela tem uma gravidade absolutamente devastadora. Ela aparece como uma ordem”.
Lembra uma carta de Freud a Einstein, em que o pai da psicanálise diz: “A crueldade que encontramos, perpetuada ao longo da história das guerras, e as manifestações de ódio e de maldade entre os homens, que também encontramos no dia a dia de nossas vidas, atestam a existência de um desejo de agressão, que merece com toda a seriedade ser denominado de instinto de morte. O organismo preserva a sua própria vida destruindo a vida alheia.”
Dodora explica: “Há uma construção de que a sobrevivência depende da destruição do outro. E o Estado pode exercer isso com a mais alta prepotência porque, além das ideias, ele tem as armas, ele tem o poder. Por isso, quando o Estado comete um crime, o crime se espraia para uma nação inteira”.
Crime que não pode passar impune, diz a procuradora: “A gente não pode deixar de combater a prática da tortura, de execrar a prática, de mostrar que ela é incompatível com a civilização. É um tema que tem de ser trabalhado em todos os campos, tem de fazer parte da formação, da evolução do ser humano”.
E continua: “Tivemos um retrocesso nesses últimos anos no Brasil. Esse governo foi votado. Mais de 50% das pessoas fecharam os olhos. Se omitir diante da defesa da barbárie é contribuir para a barbárie. Então o Brasil contribuiu. Nós estamos nessa situação porque houve contribuição. Contribuição das chamadas pessoas de bem, que vão à igreja, que querem o melhor, e realmente é impensável a gente admitir que está vivendo isso. O Poder Judiciário tem uma grande responsabilidade. O Ministério Público tem uma grande responsabilidade. Mas eles não são diferentes do restante dessa geração de profissionais que se produziu a partir dos anos 1980, 1990. Na classe dos médicos, a gente vê também coisas estarrecedoras. E estamos falando de profissionais com curso superior, pessoas que deveriam estar na elite do pensamento. Parece que essas pessoas tiveram uma injeção de retrocesso, de banalização de todas essas lesões”.
Por isso mesmo, há que celebrar a condenação de um assassino a serviço da ditadura: “O poder judiciário brasileiro vinha demonstrando muito desprezo por esse tema. Infelizmente, o Judiciário no Brasil prende muito e prende mal. No tocante à responsabilidade estatal, as estatísticas são péssimas, o índice de punição de agentes do Estado é pífio. Como já me disse a Crimeia, parente de preso político, ela própria também ex-presa, torturada, ela me disse uma vez: ‘Só de essas pessoas dormirem algumas noites sabendo que foram processadas, já é alguma coisa, já é mais do que tínhamos no Brasil há vinte anos, que era um total silêncio sobre esses crimes´. Agora pelo menos o tema está na pauta”.
No mesmo tom, Dodora Arantes lança uma mensagem de esperança: “Nessa altura dos acontecimentos, a gente tem de apostar no melhor. O pior já está dado. Se a gente pode apostar no melhor, recuperar a memória, ela traz a possibilidade de um remanejamento, de um pacto civilizatório. Nós vivemos, no Brasil, uma ditadura que durou vinte e um anos. Mas saímos dessa ditadura, construímos um pacto civilizatório, que retomou a reconstrução da nação, fundou novos partidos políticos, abriu todas as possibilidades de filiação ao campo das novas ideias. Mesmo vivendo sob uma ditadura, o país teve energia para construir o novo. Agora, que a gente não deixe que nossa energia seja sugada por um governo errático. A nação está atingida pela morte verdadeira, que foi o que a pandemia trouxe. Que nós possamos reagir. Não nos amedrontarmos, fazer com que essa chama de esperança, que foi acessa, tenha sua luz própria.
MANIFESTO
Em 31 de março de 2019, milhares de pessoas saíram às ruas, em todo o país, para participar de marchas silenciosas e das mais variadas manifestações realizadas em protesto ao golpe civil-militar de 1964. Foi o maior ato público contra a ditadura militar e a recorrente violência de Estado, desde a Constituição de 1988.
Naquele domingo, o silêncio foi quebrado por vozes que se ergueram para defender valores democráticos; para clamar por Justiça; para honrar a memória das milhares de pessoas assassinadas, desaparecidas e torturadas pela ditadura militar e de todas as demais vítimas da violência que o Estado acumula, mesmo após a redemocratização.
Para que essas vozes se multipliquem e sejam ouvidas em todas as esferas dos poderes de Estado, dá-se início, neste 24 de junho de 2019, no histórico auditório da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), ao movimento “Vozes do Silêncio contra a Violência de Estado”.
O “Vozes do Silêncio” manterá viva a jornada iniciada em 31 de março de 2019, não apenas para reforço dos eventos que anualmente são promovidos no dia 31 de março, como também para inspirar outras ações que contribuam com a luta histórica por Democracia e por Justiça para todas as pessoas, sobretudo às populações atingidas pela violência de Estado, sob todas as suas formas.
Como parte dessas ações, o “Vozes do Silêncio” inicia sua jornada com a apresentação das seguintes demandas prioritárias aos órgãos executivos, legislativos e integrantes do sistema de Justiça:
- Reafirmação do compromisso com a Democracia, a participação social nas decisões públicas e o não retrocesso nos direitos sociais, econômicos, culturais, civis e políticos;
- Respeito às decisões de tribunais internacionais de direitos humanos;
III. Punição de agentes públicos responsáveis por graves violações aos direitos humanos;
- Revisão dos critérios de militarização das funções policiais e da formação de agentes públicos;
- Adoção de medidas concretas para reversão dos índices de mortalidade violenta das populações indígena, negra e pobre.
Reafirma-se, finalmente, que o presente movimento surgiu da luta pela Justiça de Transição e continuará se dedicando à defesa de seus pilares, ou seja, a) preservação da Memória e resgate da Verdade sobre as graves e reiteradas violações a direitos humanos praticadas em nosso país; b) promoção da Justiça com a punição dos agentes responsáveis por graves violações aos direitos humanos; c) Reparação material e imaterial às vítimas e seus familiares; d) Reforma das instituições envolvidas com violência de Estado, seja na sua perpetração ou na manutenção da impunidade.
TUCA – Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 24 de junho de 2019
Movimento Vozes do Silêncio contra a Violência de Estado
Idealizadores:
Centro Acadêmico 22 de agosto da Faculdade de Direito da PUC/SP
Comitê Paulista de Memória e Verdade
Comitê Pernambucano Memória, Verdade e Justiça para a Democracia
Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
DCE Livre Universidade de São Paulo Alexandre Vannuchi Leme
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos
Ex-presos políticos
Linhas de Sampa
Instituto Vladimir Herzog
Intercâmbio – Informações, Estudos e Pesquisas
Núcleo de Preservação da Memória Política
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
Deixar um comentário