O prêmio Nobel de medicina deste ano foi para um pesquisador da universidade britânica de Oxford, na Grã-Bretanha, e dois cientistas dos Estados Unidos, de Harvard e da John Hopkins. Mas é bem provável que as festas mais animadas de comemoração tenham acontecido em São Paulo e em Teresina, no Piauí.

Isso porque uma jovem piauiense, doutoranda da USP, está desde o ano passado participando de pesquisas no laboratório comandado por Peter Ratcliffe em Oxford, estudando o comportamento de células cancerosas. O estágio de Joanna Darck Carola Correia Lima faz parte de seu trabalho no doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, e o entusiasmo dela com o anúncio pode visto neste texto que ela colocou nas redes sociais na última segunda-feira (7.10):

“Começar a semana com seu orientador de BEPE ganhando o prêmio NOBEL! Eu estou que não me aguento de emoção! Emoção de fazer parte disso, emoção de viver isso… Professor SIR Peter Ratcliffe, QUE ORGULHO DE FAZER PARTE DO SEU LAB! Obrigada Mila Seeländer, minha eterna orientadora, por me incentivar e permitir essa oportunidade! Sou lab cachexia e sou lab hypoxia! Aqui somos balbúrdia com muito orgulho!” (no destaque na home page, Joanna e Ratcliffe, foto Arquivo pessoal)

Para saber mais sobre o significado da pesquisa vencedora do Nobel e sobre a situação das pesquisas na universidade brasileira, TUTAMÉIA foi conversar com a orientadora de Joanna Carola na USP, MARÍLIA SEELAENDER, professora associada do Instituto de Biociências e da Faculdade de Medicina da USP.

“A pesquisa da Joanna busca entender por uma pessoa com câncer perde peso, e outra com o mesmo tipo não perde. Isso é importante porque quem perde peso tem menos condições de lutar contra o câncer, vai ter menos chances de aceitar a quimioterapia, menos chances de sobreviver”, diz a professora, prosseguindo:

“A gente primeiro foi ver se o tumor do paciente que perde peso era igual ao o que não perde peso. Joanna olhou, no mestrado dela, a diferença entre esses tumores. E ela já viu que as células imunes que atacam esses tumores são diferentes, e viu também que esses tumores secretam coisas diferentes. Ela viu que pacientes que têm caquexia (perdem peso) têm mais fatores que causam inflamação sendo liberado pelo tumor. Um desses fatores é justamente esse HIF” [que foi o tema de estudo nas pesquisas que conquistaram o Nobel e que continua sendo estudado por Ratcliffe em Oxford.

Na entrevista (veja no vídeo acima), Seelaender explicou possíveis aplicações práticas da descoberta dos ganhadores do Nobel, que tem implicações não só no combate ao câncer e outras doenças, como também na atividade física, pois trata de como as células se comportam em relação à carência de oxigênio.

“Pode dar chances para muito doping”, diz ela, ao mesmo tempo em que lembra que o uso de substâncias químicas para ganhar performance atlética pode até dar resultados imediatos, mas tem consequências danosas.

“Toda vez que você introduz um hormônio no organismo, o que acontece é que o seu corpo percebe a presença desse hormônio e vai diminuir a produção. Num atleta que toma testosterona, por exemplo, o que vai acontecer é que os testículos não vão produzir testosterona, e as consequências vão ser ruins para a pessoa.”

Em contrapartida, a atividade física é benéfica para qualquer pessoa: “O exercício cura desde o câncer até unha encravada”, afirma a professora.

A frase pode ser brincalhona, mas seu conteúdo tem muito de verdade: Seelaender e os pesquisadores que trabalham com ela vêm pesquisando os efeitos da atividade física em pacientes com câncer, e os resultados são fenomenais.

“O que a gente queria, quando começou, era diminuir a infecção e a perda de massa magra que as pessoas têm na caquexia [perda de peso e enfraquecimento geral]. O exercício de força funciona um pouco, mas ele não é capaz de diminuir a inflamação. O exercício de resistência, que ele é aquele que a gente faz por mais tempo, em uma intensidade menor, é um estímulo inflamatório, mas a cronicidade, ou seja, quando a gente repete aquilo todos os dias no treinamento, faz com que nosso corpo se adapte e desenvolva uma reação que torna nosso corpo mais capaz de combater a inflamação.”

No teste com ratos, houve várias linhas de pesquisa, com tratamento com remédios, com nutrientes. E uma das pesquisas usava o exercício: os ratinhos corriam em esteiras ou nadavam em piscinas superespeciais.

“A gente viu que nada tinha tanto efeito como quando eles faziam exercício, por seis semanas. O tumor diminuía sozinho, às vezes ele sumia. Esse tumor dos ratos é enorme, é 20% do peso do rato. Sumia! E todas as alterações nas células também sumiam”, conta a professora.

Por causa do sucesso da experiência, os pesquisadores tiveram autorização para fazer testes com humanos, o que é feito hoje no Hospital Universitário da USP e na Santa Casa.

“A gente tem tido resultados maravilhosos”, resume Seelaender. “Todos aqueles fatores que são alterados pela caquexia  –o fígado não está funcionando, o músculo sendo perdido, a inflamação, tudo isso está sendo revertido só com a caminhada de 20 minutos, cinco vezes por semana, por seis semanas. E o tumor diminui também. A gente não chegou a ter sumiço, como aconteceu nos ratos, mas o tumor diminuiu só com exercício. E é uma caminhada, gente! Qualquer um pode fazer, desde que assistido por uma pessoa da família ou amigo.”

Os resultados da pesquisa estão para ser publicados. O artigo vai mostrar a amplitude dos efeitos da atividade física, conforme explica a professora da USP: “Os pacientes que a gente trata com exercício, eles vêm caquéticos, a maior parte deles tem depressão e tem perda cognitiva. Quando eles saem, seis semanas depois, eles já não são mais caquéticos e essas perdas foram revertidas. O exercício tem um efeito superpoderoso”.

O que provoca a ira de parte da indústria: “As farmacêuticas odeiam. As farmacêuticas sempre querem que você coloque o exercício numa pílula. Porque as pessoas também não querem se exercitar. Têm preguiça. É mais cômodo para a pessoa tomar uma pílula, e a indústria farmacêutica fica muito mais feliz porque eles ficam ricos com isso”.

Pesquisas como essa e estudos como o desenvolvido por Joanna Darck  no laboratório comandando pelo prêmio Nobel de medicina deste ano estão ameaçados pela política de Bolsonaro e de seus ministros –a frase “aqui somos balbúrdia com muito orgulho”, de Joanna, faz referência a um xingamento feito pelo ministro da Educação às universidades e aos universitários.

A ameaça é grande, afirma a professora Marília Seelaender:

“Não posso ser contundente o suficiente [para descrever] o horror que a gente está passando atualmente. Nós temos tantos talentos, pessoas tão inteligentes, o próprio sir Peter Ratcliffe, que recebeu o Nobel, disse: `Olha, a Joanna, se não é a melhor, é uma das melhores alunas que eu já tive na vida’. E ele é uma pessoa já de idade, que ganhou o Nobel em Oxford. O brasileiro tem uma capacidade muito boa. Mas a gente não tem como expressar essa capacidade. Houve um esforço, nos governos anteriores, de fazer alguma coisa no ensino superior. Muita gente que não tinha acesso à informação, a uma formação, conseguiu se formar e sair de um estado de pobreza, e deixar aparecer seus verdadeiros talentos, contribuir para a sociedade. Tudo isso agora está passando por um extremo retrocesso.”

Ela segue: “Eu quase tive um infarto quando disseram que tinham cortado as bolsas [federais]. Nosso programa perdeu várias bolsas. Imagina você pagando aluguel, comida em libras e, de repente, não ter mais… Imagina a Joanna, com essa sua genialidade, sua capacidade de trabalho ter de interromper o trabalho, passar fome, para poder trabalhar [NR: A frase de Seelaender é um exemplo hipotético. Joanna tem bolsa da Fapesp, que, por enquanto, não está ameaçada]”.

Por causa desse ataque, muitos pesquisadores brasileiros estão acabando por ficar no exterior, recebendo incentivo de universidades e centros de pesquisas estrangeiros. O próprio centro de pesquisas comandado por Seelaender já perdeu quatro doutorandos: “Há um desmonte de ciência e educação, e a gente fica chocado com isso. Na nossa concepção, não existe como desenvolver um país e como diminuir nossa enorme desigualdade econômica e cultural se não for através da educação e da ciência. O que está acontecendo agora é um desmonte tão pronunciado e tão efetivo, que eu não sei quanto tempo vai ser necessário para nosso país recuperar a perda de todos esses talentos, que aí estão e que não vão ter outra chance. É uma geração perdida, se não várias gerações”.

“A gente vê isso com enorme alarme”, afirma. “No exterior, as pessoas estão olhando isso com alarme também, e acho que a gente vai ser jogado numa situação em que a gente não vai conseguir jamais chegar numa situação nem digo de primeiro mundo, mas digna. Há vários focos de agressão à cultura, à educação e à ciência, estão concatenados, e isso é alarmante.”

Ela resume a situação dizendo: “Vivemos em tempos de trevas”.  E conclama:

“A gente precisa reagir, se não a gente vai cair em trevas das quais a gente não vai conseguir mais sair. A gente tem uma luta para mostrar que a ciência é importante, e que a ciência está presente na vida das pessoas o dia inteiro. Tudo o que a gente faz a gente põe ciência dentro, toda a nossa curiosidade é parte da ciência. Vamos olhar o que a gente em, vamos olhar o nosso povo, e não vamos deixar tudo o que a gente tem de mais lindo ser desmontado. Ao contrário, vamos nos unir e fazer crescer, vamos aumentar nossa cultura, nossa ciência, nossa educação, vamos dar as mãos e combater as trevas.”